sexta-feira, 6 de junho de 2008

Análise iconográfica da obra Pretos de Ganho de Henri Chamberlain.



Views and Costumes of the city and neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil, from drawings taken by lieutenant Chamberlain, Royal artillery, during the years 1819 and 1820, with descriptive explanations.

Há uma relativa escassez de noticias sobre o Brasil, vindo de fontes estrangeiras, em períodos anteriores a vinda da família real. Devido às políticas de controle de contrabando de diamantes, durante todo o século XVIII e início do XIX, os estrangeiros eram recebidos nos portos brasileiros com grande desconfiança e não podiam transitar livremente pelo território, muito menos penetrar no interior da colônia portuguesa. A abertura dos portos brasileiros ao comércio marítimo internacional imposta pelos ingleses à D. João VI, não tiveram somente as conseqüências conhecidas e exploradas largamente pela historiografia relativa à independência do Brasil, mas também, estas medidas facilitaram a entrada dos viajantes europeus dando origem ao aparecimento de livros de viagens sobre o Brasil em quantidade cada vez maiores. Dadas as “amistosas” relações entre Portugal e Inglaterra, é natural que os ingleses logo nos visitassem curiosos por tudo quanto se tratava desse lugar longínquo e pitoresco que representava o Brasil no imaginário europeu.

Entre os livros de viagem sobre o Brasil que surgiram antes de nossa independência, nenhum fez tanto sucesso quanto o livro de Henry Chamberlain: “Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro”. Publicado em Londres, em 1820, portanto, anteriormente as publicações de Debret e Rugendas, o livro contém trinta e seis litografias coloridas[1], feitas segundo os desenhos do autor.

O autor de “Vistas e costumes do Rio de Janeiro” era o filho mais velho de Sir Henry Chamberlain, cônsul geral e encarregado de negócios de Sua Majestade Britânica no Rio de Janeiro, de 1815 a 1829. Representando os interesses ingleses no Brasil durante esses anos, Sir Henry adquiriu, tanto junto a D. João VI como D. Pedro I, um enorme prestígio; foi sem dúvida uma das personalidades de corpo diplomático mais importantes – tanto nas cortes portuguesas como brasileiras – no período em que aqui viveu. Filho de pai ilustre, o nosso pintor Henry Chamberlain, seguiu a carreira das armas e quando veio ao Brasil era tenente da Real Artilharia inglesa. Mais tarde esteve na Nova Zelândia, na Colônia do Cabo e nas Bermudas, levando a vida monótona de oficial das tropas coloniais. Faleceu nas Bermudas vitimado de febre amarela aos 48 anos. Dotado de um verdadeiro talento de pintor, não desenvolveu este dom, pois, no seu tempo não deveria ficar bem a um oficial do exército ter fama de pintor.

Todavia, era elegante desenhar e pintar displicentemente como amador, o que só favoreceria a fama de um oficial bem nascido. Embora a fama de artista não devesse ser ambicionada por um gentleman, ele publicou o seu livro de impressões de viagem às próprias custas e como convinha a um nobre amador: ou seja, uma edição de luxo e uma tiragem de poucos exemplares.

Chamberlain não pintou somente o que publicou, ele não se limitou a percorrer as ruas do Rio de Janeiro em busca de cenas pitorescas, desceu a costa e esteve em São Sebastião, Santos, São Paulo e Minas Gerais; pinturas essas nas mãos de alguns poucos colecionadores e que poderiam ter um imenso valor documental sobre o cotidiano nessas regiões do Brasil.

O tenente de artilharia que teve a oportunidade de vir a um país exótico como o Brasil, em vez de pegar a pena e escrever um livro narrando o que viu, preferiu pegar nos pincéis e pintar através de um espírito observador e honesto exatamente o que tinha diante dos olhos, porém, como não podia descrever tudo quanto queria sobre os estranhos costumes do Rio de Janeiro, redigiu, para cada gravura em “Vistas e Costumes do Rio de Janeiro”, um comentário explicando cada evento retratado. Chamberlain não teve outra pretensão, além de mostrar aos seus compatriotas como era bela a paisagem e como eram esquisitos os costumes do Rio nas vésperas da Independência.

Um dos aspectos que muito atraiu a curiosidade de Henry Chamberlain durante sua estadia no Rio de Janeiro foi a grande presença de negros escravos e suas formas peculiarmente urbanas de exploração do seu trabalho. Nas cidades, os escravos e escravas poderiam ser alugados[2] para a realização de atividades remuneradas, do qual, o produto adquirido deveria ser repassado ao proprietário do escravo e caso houvesse um excedente este ficaria com o escravo para seu próprio sustento e em alguns casos até para a compra da sua alforria. As mulheres escravas costumavam exercer este tipo de atividade[3] como quitandeiras vendendo doces, galinhas, frutas, verduras etc; ao passo que, os homens costumavam trabalhar em atividades que exerciam maior força bruta.

Portanto, como podemos ver na gravura, é reproduzida a forma com a qual são transportados as pipas de vinho, água e outros pesados objetos. Logo se vê a grande quantidade de negros que são empreendidos nesta tarefa como carregadores de aluguel que se encontram equipados com grossas e compridas varas, cordas e carretões baixos para arrastar as mercadorias de um local para outro. Segundo os comentários do autor, nessa região da rua Direita perto da Alfândega, encontravam-se grandes quantidades desses negros[4].

Chamberlain também descreve como funcionava o processo de carregamento dessas cargas pelos escravos, ressaltando que geralmente um escravo tinha o papel de chefe, ou capataz, como se costumava dizer. Quando todos os escravos estavam a postos, eles levantam devagar o tonel, e cada um colocando a mão no ombro do vizinho para o equilíbrio começavam a se mover; para manter a regularidade dos passos e para produzir uniformidade no esforço, o Capataz cantava algumas palavras africanas, ao final das quais todo o corpo se juntava ao coro, e assim cantando e marchando juntos, eles completavam o serviço. O capataz geralmente arrumava um jeito de ficar para trás e somente empurrava o peso para frente, poupando-se pelo esforço dos outros envolvidos. Os carregadores do Rio de Janeiro são, contudo, segundo a visão do pintor, ou não tão fortes ou não tão dispostos como os negros Gallegos de Lisboa, onde quatro escravos não tinham dificuldade de carregar um tonel de vinho, enquanto que, na figura são representados oito escravos para levantar o barril. Outros seis escravos aparecem puxando um carrinho que suporta um barril[5].

Ao longo de “Vistas e Costumes do Rio de Janeiro” podemos perceber fortemente a presença do negro e da escravidão segundo a perspectiva do pintor. É possível analisar através de suas gravuras como era a dinâmica da inserção do negro nessa conjuntura escravocrata urbana, retratando quais eram suas relações em um âmbito do cotidiano ou até mesmo nos quadros da família fluminense no início do século XIX. Diferentemente de outros artistas, a iconografia apresentada por Chamberlain não privilegia os panoramas da cidade e, sim, seus tipos sociais, daí sua importância no que se refere à iconografia da escravidão no Brasil, no século XIX.

ANEXO – REPRODUÇÂO DOS COMENTÁRIOS DO PINTOR SOBRE PRETOS DE GANHO.

Aqui vão reproduzidas as duas maneiras de transportar pipas de vinho e outros objetos pesados.
Na parte larga da rua Direita, perto da Alfândega, encontra-se grande número desses negros, empregados como carregadores de aluguel para transporte de cargas, munidos de grossas e compridas varas e de fortes cordas para carregar, ou com carretões baixos e toscos para arrastar as mercadorias de um lugar para outro.

Esses homens são, geralmente, talvez possa dizer-se invariavelmente, escravos que trabalham para os seus senhores, a quem entregam, todas as noites, de volta para casa, determinada importância, guardando para si apenas as sobras, si as houver; outras vezes, nos maus dias, repõem as diferenças do ganho.

Muitas famílias vivem exclusivamente do trabalho de escravos, acima descrito.

Quando o peso é demasiado para um só homem, a carga é levantada em uma vara e assim conduzida ao destino, por dois escravos. Para cargas ainda maiores são precisos quatro, seis ou mais, conforme o caso exigir. Em geral, um deles negocia por todos, assumindo o papel de chefe, ou capataz, como se usa dizer. Tudo acertado, erguem o peso vagarosamente, cada qual pondo a mão no ombro do vizinho, para apoiar-se, e só então começam a se locomover. Afim de manter a regularidade do passo, tão necessária para produzir uniformidade de esforço, o capataz canta algumas palavras africanas às quais todos respondem em coro. E assim, cantando e marchando juntos, executam o trabalho contratado.

Os carregadores negros do Rio, ou não são tão fortes ou não são tão dispostos a fazer força quanto os seus colegas, os galegos de Lisboa, onde quatro não tem dificuldade em carregar uma pipa de vinho, enquanto que dos primeiros, um grupo de oito não tentaria levantar tal peso.

O carretão, que desliza sobre quatro rodas pequenas e fortes, é um veículo dos mais difíceis de se manejar. Suas rodas são baixas e sólidas, fixadas nos próprios eixos, que também giram com elas; o estrado, colocado simplesmente sobre os eixos (firmados a uma cavidade semicircular, toscamente executada), nada tem que o segure no lugar e por isso escapa constantemente, causando demoras além de grande esforço suplementar.

A carga é, em primeiro lugar, amarrada com firmeza; em seguida, arrasta-se o carretão, como se vê. O capataz sempre dá um jeito de ficar para atrás, empurrando o peso para frente, poupando-se assim à custa dos outros, em cujo proveito canta e dos quais recebe resposta em coro, como já ficou dito.

As casas, que aparecem na gravura, ficam na rua Direita, a grande via comercial; a travessa é a rua das Violas.



NOTAS

1) A técnica da litografia fora inventada cerca de vinte anos antes da publicação do livro de Henry Chamberlain por Senefelder. Esta técnica revolucionou a arte das gravuras, permitia maiores tiragens e as reproduções dos desenhos saíam de forma mais nítida e perfeita.

2) Convencionou-se denominar estes escravos como escravos de ganho e muitas famílias fluminenses sobreviviam quase que exclusivamente do trabalho desses escravos.
Estes escravos invariavelmente deveriam voltar para casa, caso morassem com seus senhores, e entregarem os valores adquiridos nos seus serviços. Vale lembrar, que muitas vezes, não há um excedente para o escravo ou não é atingida a meta do dinheiro que o senhor esperava receber pelos serviços feitos, sendo assim, os escravos acabavam endividando-se muito mais com os seus senhores.

3) É interessante notar que era tão grande a presença das escravas negras trabalhando neste ramo de atividade do comércio, ou seja, das feiras livres nas ruas do Rio de Janeiro, que elas possuíam quase um monopólio desta atividade em relação às mulheres brancas.

4)Trata-se de uma região central da cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Como a cidade era pouco provida de aquedutos e a situação deles eram extremamente precárias, em muitas regiões da cidade era vital a utilização destes escravos para o abastecimento de água e a recolha de dejetos produzidos pelas casas.
No caso das pipas de vinho, há uma grande movimentação destes escravos perto da Alfândega, que transportavam esses galões que muito provavelmente eram produzidos em Portugal. Daí a grande quantidade desses negros percebidos pelo pintor.

5) Alguns historiadores acusam Chamberlain de plagiário, afirmando que as figuras dos escravos teriam sido retiradas de desenhos de um artista português chamado Joaquim Cândido Guillobel que esteve no Rio de Janeiro em 1811.
É possível consultar a semelhança deles em: MACHADO, Cândido Guinle de Paula. (ed.); BERGER, Paulo. Usos e costumes do Rio de Janeiro nas figurinhas de Guillobel. Curitiba: edição privada, 1978.

CRÉDITOS

Henry Chamberlain, gravado por Thomas Mc´Lean, Pretos de Ganho, 1819 - 1820, gravura, litografia sobre papel(águatinta colorida), 20 x 28 cm. Coleção Brasiliana – Fundação Estudar, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação Fundação Estudar, 2007.

BIBLIOGRAFIA

CHAMBERLAIN, Henry.Vistas e Costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, segundo desenhos feitos pelo t.te Chamberlain, da Artilharia Real durante os anos de 1819 a 1820 com descrições. Tradução: Rubens Borba de Moraes; São Paulo: Livraria Kosmos Erich Eichner & Cia, 1943.

MOURA, Carlos Eugenio Marcondes. A Travessia da Calunga Grande: Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.

SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.) e GARCIA, Lucia. Registros Escravos: repertório das fontes oitocentistas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006.

MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico 1800-1850. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BELLUZZO, Ana Maria. Coleção Brasiliana / Fundação Estudar. São Paulo: Via Impressa, 2006.