terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A Revolta da Vacina e a cidade do arrivismo

A Revolta da Vacina, como movimento insurrecional popular, caracterizou-se por ocorrer em um período de intensa transformação da sociedade brasileira. Este movimento ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, no ano de 1904. Seu pretexto imediato foi a campanha de vacinação em massa contra a varíola, desencadeada pelo presidente da República Rodrigues Alves, o prefeito do Rio de Janeiro Pereira Passos e o diretor do Serviço de Saúde Pública Osvaldo Cruz. No entanto, com o advento da ordem republicana no Brasil, iniciou-se um conturbado processo de desestabilização e reajustamento social, que através das próprias contradições do início da democracia brasileira, tornará o Rio de Janeiro a capital do arrivismo.


Nicolau Sevcenko ilustrando o panorama conjuntural da inserção compulsória do Brasil na Belle Époque em sua obra Literatura como Missão, ressalta a importância das crises políticas de 1889, 1891, 1893 e 1897 – causando diversas deportações, exílios, prisões-, que inicialmente tinha atingido as elites ligadas ao Império e posteriormente passou a atingir os republicanos mais preocupados com os anseios populares. No plano econômico, com a política do Encilhamento encabeçada por Rui Barbosa e a conseqüente queima de “fortunas seculares”, as práticas especulativas e o jogo de títulos e ações em torno das graves oscilações cambiais promoveram verdadeira “fome do ouro, sede da riqueza, do luxo, da posse etc”. Iniciou-se assim, um novo processo de seleção política no Brasil, onde esses Homens Novos passaram a ocupar cargos rendosos e de mando dados pelo governo através de “nomeações”, “concessões”, “privilégios” e “favores”. Institui-se desta forma, o modelo do burguês argentário; e esta transformação se dará de forma tão avassaladora que fará aderir ao modelo burguês plutocrata até os antigos senhores do Império.


A cidade do Rio de Janeiro no florescer do século XX, desempenhava um papel privilegiado na intermediação dos recursos da economia cafeeira. Centro político e administrativo do país apresentava uma enorme quantidade de capitais acumulados principalmente nos setores de comércio e finanças, que indubitavelmente, fez também se desenvolver o setor industrial. Abrigava a Sede do Banco do Brasil, a maior Bolsa de Valores e possuía a maior parte das grandes casas bancárias nacionais e internacionais. Apresentava o mais amplo mercado nacional de consumo e de mão de obra, sendo o porto do Rio de Janeiro na virada do século, o 15º maior porto em volume de comércio. Essas transformações nos modos de vida proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico e industrial aliados à “democratização do crédito” introduziu uma remodelação nos hábitos sociais e cuidados pessoais causando uma verdadeira febre de consumo da novidade; a enorme quantidade de lojas na rua do Ouvidor era o mais nítido exemplo do que significava acompanhar o progresso: alinhar-se com os padrões e os ritmos da economia européia, ou seja, ser chic ou smart.


Como verificou José Murilo de Carvalho em Os Bestializados, Rodrigues Alves assumiu o governo vendo Campos Sales sair do Rio sob imensa vaia. O governo de Campos Sales tinha sido de intensa recessão econômica produzida por uma política de combate à inflação, pela contenção drástica dos gastos do governo e pelo aumento de impostos. De fato, Campos Sales conseguiu reajustar a economia do país, porém, o fez à custa da insatisfação geral que ia dos operários aos cafeicultores, englobando banqueiros e industriais. Rodrigues Alves, sem alterar substancialmente a política econômica vigente, decidiu realizar um intenso programa de obras públicas, financiado por recursos externos, visando a modernização do Brasil tendo como ponto de partida a capital Rio de Janeiro. Para isto, iniciou as obras de saneamento e de reforma urbana do Rio de Janeiro aliada a lei de vacinação obrigatória contra a varíola, e assim, inicia-se um verdadeiro drama humano das populações mais humildes cariocas. Brigadas sanitárias compostas por um chefe, cinco guardas mata-mosquitos e operários de limpeza pública, percorriam ruas visitando casas, desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes; principalmente nas áreas mais pobres e de maior densidade demográfica, e na maioria das vezes essas visitas ocorriam com a presença da polícia que utilizava a força para prevenir resistências.


Segundo Nicolau Sevcenko em A Revolta da Vacina, as condições de vida na cidade do Rio de Janeiro vinham se deteriorando inexoravelmente. O pequeno espaço urbano, entremeado de morros e áreas pantanosas, passava por um processo vertiginoso de metropolização, com a população crescendo pasmosamente de 522.651 habitantes em 1890 para 1.157.873 em 1920. A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos antigos casarões coloniais e imperiais que ocupavam a região central da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros cubículos que eram alugados para famílias inteiras dando origem aos cortiços. A insalubridade da capital, foco endêmico da varíola, tuberculose, malária, febre tifóide, lepra e febre amarela aliado ao não planejamento urbano da cidade era um problema muito conhecido desde os áureos tempos do Segundo Reinado.


Este processo de reforma urbana foi saudado entusiasmadamente pela imprensa conservadora, que a denominou “a Regeneração”. Essa era a voz dos beneficiários do replanejamento, que agora iriam possuir amplos espaço públicos controlados e elegantes, onde antes não podiam circular senão com desconforto e timidez. Amplos espaços de convívio e sociabilidade burguesa no melhor do estilo da Belle Époque, que faria como vítimas toda uma multidão de humildes que constituíam a massa trabalhadora, desempregados, subempregados e desclassificados. A ação do governo não atentou somente contra os alojamentos dessas pessoas; como salientou Nicolau Sevcenko, a imposição destas ações influenciou em “suas roupas, seus pertences pessoais, sua família, suas relações vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, suas formas de subsistência e de sobrevivência, sua cultura enfim, tudo é atingido pela nova disciplina espacial, física, social, ética e cultural pelo gesto reformador”. Gestos estes, oficiais, autoritários e inelutáveis, que se fazia, ao abrigo das leis de exceção e bloqueavam quaisquer direitos ou garantias das pessoas atingidas.


A intenção deste breve trabalho, não é identificar o jogo político e a trama que deflagrou a Revolta da Vacina, mas sim, tentar apontar e entender como uma política de tamanha proporção se volta contra quase 80% da população do Rio de Janeiro que não tinha direito à participação política através dos mecanismos eleitorais. Sendo que, embora as propostas de Rodrigues Alves tendessem para um motivo modernizador do país, esta modernização realmente só se efetivaria para uma minoria alienada ao novo ritmo e estilo de vida cosmopolita da Belle Époque.


A ação da regeneração provocou rebuliço na cidade inteira e perturbou a vida de milhares de pessoas, em especial os proprietários das casas desapropriadas para demolição, os proprietários de casas de cômodos e cortiços anti-higiênicos, que eram obrigados à demoli-los ou reforma-los; e os inquilinos que deveriam receber os agentes de saúde e muitas vezes ficavam sem lar quando suas moradias eram condenadas à demolição. Como citou José Murilo de Carvalho no capítulo Cidadãos Ativos: A Revolta da Vacina, o atestado de vacina era exigido para praticamente tudo: matrícula em escolas, emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em hotéis e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc. Isto nos dá uma idéia da dimensão com que essas medidas afetavam o cotidiano das pessoas.


As conseqüências para essa enorme massa popular de trabalhadores, subempregados, desempregados e vadios compulsórios, segundo Nicolau, não se limitava às multas para os recalcitrantes, essas populações foram sendo empurradas para o alto dos morros e para os subúrbios ao longo das estradas de ferro e ao redor das estações de trem. O centro, por sua vez, tornou-se o foco de toda agitação e exibicionismo da burguesia arrivista: “seu pregão, sua vitrine, seu palco“. Separou-se assim o ócio do trabalho, porque o primeiro já não toleraria a convivência com o segundo, ao contrário do que fora a tônica da sociedade do Império: “O mundo do trabalho torna-se assim invisível para a sociedade burguesa”, trata-se da estratégia do ocultamento do universo do trabalho.


Desta forma temos que, assim como que a burguesia argentaria carioca não desejava ver o trabalho , a mesma não suportava ter a visão da doença, da rebeldia, da loucura, da velhice, da miséria ou da morte, estas, são todas excluídas para os sanatórios, prisões, hospitais, asilos, albergues e necrotérios. A campanha de vacinação, a violenta repressão e de uma forma mais ampla, o processo de Regeneração, visava implantar uma nova sociedade no Rio de Janeiro; e a elite dirigente viu deste modo uma forma de redimir o país de seu atraso, surge assim a conclusão de que o Brasil é um “imenso hospital” sugerindo a divisão da sociedade entre sadios e sãos: cabendo aos primeiros, como decorrência natural, a salva-guarda dos enfermos.


BIBLIOGRAFIA:

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. SP, Brasiliense, 1983; p. 11-134.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. SP, Brasiliense, 1984; p. 13-83.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. SP, Cia. das Letras, 1990; p. 9-163