terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pregadores e Missionários na cultura do barroco

O Homem Barroco é um livro escrito por um grupo de especialistas de renome e dirigido por Rosário Vilari, descreve a sociedade barroca enquanto organismo social estruturado segundo hierarquias reconhecidas e aceites, onde cada elemento tem um lugar e uma função. Surgem então figuras como o estadista, o soldado, o financeiro, o secretário, o rebelde, o pregador, o missionário, a religiosa, a bruxa, o cientista, o artista e o burguês – cada uma delas contribuindo para que este período da história européia, muitas vezes considerado como época de estagnação no progresso da civilização, fosse na realidade uma importante etapa para a criação de um novo equilíbrio social e político e para o aparecimento de modos de sentir e de pensar que são já de plena modernidade.

Antes de partirmos propriamente dito para o tema desta resenha crítica, ou seja, especificamente no que se refere ao capítulo O Pregador escritos por Manuel Morán e José Andrés-Gallego e O Missionário por Adriano Prosperi, temos que lembrar alguns aspectos importantes referentes às experiências e condições gerais (culturais, religiosas e políticas) para o delineamento da figura do Homem Barroco. Esta expressão “homem barroco” é quase uma expressão inédita, anteriormente, o uso do termo barroco só teria sido admitido para a correlação das manifestações artísticas e tendências literárias, não para, a caracterização de modos de pensar e ver o mundo do período da história européia que vai de fins do século XVI até a segunda metade do século XVII. Benedetto Croce já havia falado de “época barroca”, porém, restituía ao termo o seu significado tradicional negativo enquanto alargava o âmbito de sua utilização para demonstrar nessa época os traços fundamentais de uma cultura que era expressão da decadência e da crise moral. Todavia, são necessárias cautelas com a pretensão de se descobrir em todo o mundo seiscentista uma unidade espiritual e intelectual sólida, uma vez que, a atribuição de características próprias referentes a um modo especifico de pensar, sentir e agir no período está muito presente na cultura histórica da contemporaneidade. No entanto, são bastantes presentes algumas caracterizações na fala de historiadores como Roland Mousnier que colocaram está época como “um século de crise”, ou como José Antonio Maravall que descreve o período “em que a sociedade é dominada por uma sensação de ameaça e instabilidade que gera, por reação, uma cultura conservadora e repressiva”.

A conflitualidade do barroco muito marcou os historiadores pela sua intensidade, pela sua difusão e pela sua influencia nos modos de pensar e agir. Este período é marcado por um confronto das esferas políticas e religiosas, pela amplitude das guerras, o agravamento dos antagonismos sociais e as questões de procedência do dia-a-dia de rituais administrativos e eclesiásticos e modelos de comportamento previamente aceites e estabelecidos. O historiador inglês John Elliot, ainda sugeriu a hipótese de que também se poderia falar de crise revolucionária geral quanto aos anos das guerras de religião, desestruturando a idéia da singularidade desses eventos em alguns países, na primeira metade do século XVII.

No entanto, deve-se lembrar que o aspecto essencial da conflitualidade barroca reside muito mais na existência de comportamentos aparentemente incompatíveis ou nitidamente contraditórios no âmago do mesmo individuo, do que no, contraste entre indivíduos diferentes. Há uma clara convivência entre o tradicionalismo e a busca de novidade, de conservadorismo e rebelião, de amores à verdade e cultos da dissimulação, superstição e racionalidade, de afirmação do direito natural e de exaltação do poder absoluto, enfim, são inúmeras as características conflituosas que podem ser encontradas em diferentes matizes em todo o mundo barroco. Durante muito tempo, defrontando-se com os mistérios dessas contradições estruturais e íntimas, e de certa forma influenciados pela imagem negativa que a época barroca transmitiu de si mesmas, a cultura histórica acabou por admitir em relação a este período, uma espécie de incapacidade de contribuir para o progresso da civilização com amplos movimentos de idéias e empenho coletivo, sinalizando assim, que estas características de conflitualidade e contradição agiriam de forma obstrutiva e estagnadora das forças propulsoras do progresso da civilização ocidental. Frente a este pano de fundo do mundo barroco, algumas personalidades foram caracterizadas mais como exceções do que como autênticas expressões do seu tempo como: Galileu, Bodin, Bacon, Descartes, Sarpi e Espinosa.

O século XVII foi praticamente original no que se refere à criação e tentativa de imposição na cultura e na mentalidade de modelos rígidos de tipos sociais, fórmulas e critérios de interpretação. Este grande empenho, certamente foi influenciado pelo boom das crônicas acerca de acontecimentos e pessoas da época, o início da propaganda política de massa – o jornalismo, os panfletos, folhas volantes -, porém, teve papel vital dentro desse processo de disciplinamento social, a atuação da Igreja através das resoluções do Concílio de Trento.

Como nos remete a imagem invocada por um grande pensador italiano, Benedetto Croce: “Quem pode pensar no século XVII sem rever em sonhos a figura do pregador, vestido de negro como um jesuíta, ou vestido de branco como um dominicano(...), gesticulando numa igreja barroca, perante um auditório luxuosamente vestido?”. A grande presença do clero regular e da decoração barroca são referências que destacam o valor paradigmático do pregador na época pós-tridentina. Na grande crise religiosa do século anterior, a questão da pregação fora um elemento muito importante que causou a fratura da unidade espiritual não só entre católicos e reformados, mas também entre eles próprios.

Partindo do ponto de vista dos reformados, o valor instrumental da pregação, ou seja, o ministério da Palavra, sobressaía à função sacramental do pregador. Sendo assim, principalmente entre os católicos, a livre interpretação da bíblia, por exemplo, poderia a dar lugar a concepções religiosas, sociais e políticas que poderiam desembocar numa revolução. Daí a importância da figura do pregador na estratégia católica pós-tridentina, que se viu diante de uma dupla necessidade: recuperar para a fé os que dela tinham se desviado e consolidar a adesão espiritual de quem permanecera fiel a Roma. A grande crise provocada por Lutero, mostrou para a Igreja, que um dos motivos da falta de fé entre os fiéis era principalmente causado pelas deficiências de doutrinação. Desta forma, o Concílio de Trento definiu a doutrina católica em aspectos tão importantes como os sacramentos.

Elaborou um vasto programa de divulgação da própria doutrina principalmente destinados à formação dos sacerdotes, a pregação e o ensino do catecismo. No que concerne à pregação, esta foi o objeto de uma das primeiras seções da Assembléia Magna Tridentina, datada de 17 de junho de 1546, de onde foi constituído o decreto Super lectione et praedicatione, que seguiu e caracterizou-se no cânone IV do Decretum de reformatione. Era indispensável que os pastores de almas ensinassem “o que todos devem saber para alcançar a salvação eterna”.

Como conseqüência do que ficou dito anteriormente, temos que a retórica que já possuía uma relevância especial na história da cultura do Ocidente, ganhou um novo impulso com as Reformas protestantes e católicas. Surge assim, diversos matizes da oratória sagrada, e dos quais o que mais se destacou nesta época é a chamada pregação barroca “gesticulante”.Há um século que já se discutia sobre as conveniências de se pregar em “estilo lhano” (baseada, sobretudo, em Sêneca e na tradição “ática”), ou de se pregar em “grande estilo” (derivada de Cícero).

Os pregadores deveriam ser “vozes de Deus, instrumentos da bondade divina e trombetas de Cristo” como escreveu Diego Valdés em Rethorica Christiana, publicada em 1574 e lida em toda Europa e América; e para isso a retórica não deveria somente pretender a iluminar e ilustrar, mas, sobretudo, cativar, comover e emocionar os fiéis. Mesmo para os teólogos protestantes, a fé não era apenas consenso intelectual, mas alegria, verdade e esperança, ou seja, atitudes relacionadas à vontade, sendo assim, este deveria ser o objetivo da pregação: que para suscitar ou reavivar a fé dos ouvintes, o pregador deveria excitar as suas vontades.

Para atingir o seu objetivo, a Reforma católica fez o uso intensivo da arte do seu tempo: a exuberância decorativa, a tendência para a hipérbole, os movimento centrífugos e uma série de outras ferramentas para gerar sentimentos de fervor e de admiração na contemplação das coisas divinas, que podem ser facilmente percebidas, por exemplo, através das músicas e da arquitetura barrocas. No plano da retórica, que invariavelmente se associa a literatura profana também, emanam estilos como a pregação cultista e a conceptista neste trabalho de comoção das almas. De maneira geral, os temas mais característicos do repertório barroco destinavam-se a fazer entrever as realidades otimistas, como a glória e a felicidade no Além com o percurso sinuoso e aterrorizador repleto de armadilhas do diabo que deseja nos conduzir ao inferno; Como é o caminho percorrido pelo frei Manuel Guerra y Ribeira no seu sermão para uma quarta-feira de cinzas em 1679: “O que é o mundo? Nada mais que um evidente engano, que cria um espetáculo falaz: aparências que ofuscam mais do que deleitam”.

Todavia, a quem cabia ensinar o Evangelho? O Concílio de Trento foi muito claro acerca deste ponto, recordando que os bispos tinham a responsabilidade de pregar nas suas igrejas, aos domingos e dias festivos. É certo que a pregação pessoal dos bispos só cobria uma pequena parcela do programa pastoral da Reforma Católica – que tinham outras tarefas como supervisionar a idoneidade do culto ministerial dos eclesiásticos em sua diocese e outras tarefas administrativas.

Sendo assim, a partir deste momento a Igreja percebeu que era necessário o investimento na formação de melhores pregadores e sacerdotes. A Igreja continuava a ser a única instituição onde existia um certo grau de mobilidade social e onde mais facilmente um homem de condição humilde poderia ser promovido por mérito pessoal. Logo, o instrumento mais válido encontrado e recomendado pelo concílio de Trento para remediar as deficiências da atuação doutrinária, foi a criação dos seminários e a admissão de seminaristas que partia de uma exigência vocacional especificamente orientada para uma mentalidade profissional na execução de tarefas pastorais: pregação, liturgia e administração dos sacramentos.

O uso da imprensa também tinha posto a disposição dos eclesiásticos um bom material auxiliar sob a forma de manuais de eloqüência e coletâneas de sermões, geralmente ordenados em função do ciclo litúrgico, o que permitia de certa maneira suprir as deficiências doutrinais e de oratória. É de grande importância também a influencia dos cleros regulares – que até mesmo anteriormente ao Concílio tridentino já possuíam um grande conhecimento sobre formas de pregação – que levarão a doutrina católica até os campos e os confins da Europa.

Ordens mendicantes como os franciscanos, dominicanos, carmelitas e beneditinos serão de suma importância por já terem atingido o máximo de qualidade no cumprimento de suas funções como pregadores (justamente devido a suas formações) fora das dioceses; claro sem nos esquecermos, das novas ordens de cunho missionário como a Companhia de Jesus. A atividade pastoral dos cleros regulares, que de inicio fora um instrumento subsidiário, acabou por se tornar indispensável pelos bispos, desempenhando funções diretamente orientadas para a conversão e a catequese.

A Reforma Católica dificilmente teria chegado a maioria dos europeus, caso a pregação se limitasse somente aos centros urbanos, onde certamente havia muitas paróquias e conventos, porém, que apenas uma pequena parcela da população residia. Este problema da distribuição das populações entre os centros urbanos e as zonas rurais foi resolvido com a aplicação das missões internas (principalmente atribuídas ás ordens monásticas e as novas congregações), tratava-se de uma evangelização itinerante em que um grupo de pregadores se deslocavam de ponto em ponto, sobretudo nas áreas rurais, instruindo as pessoas à reavivarem a sua fé e a viverem sob os preceitos da Igreja Católica, convertendo os protestantes ou melhorando as condições espirituais dos católicos insistindo nos aspectos catequísticos e penitenciais.

Assim, a Igreja agora tanto para o clero secular como o regular, passou a dispor de uma ratio stiudorum (um método pedagógico que visava a acumulação de alguns saberes essenciais na formação dos seus pregadores baseados sobretudos nos autores clássicos), um cursus honorum até a habilitação para a pregação; ter uma certa habilidade no manejo das Sagradas Escrituras, dominar o latim, o grego, o hebraico e ter o prévio conhecimento de qualquer outra matéria que se faça necessária. Enfim, o pregador deveria ter o pleno conhecimento das técnicas envolvidas na criação do sermão com suas diferentes passagens de níveis (exórdio, exposição, confirmação e conclusão) utilizando-se da oratória e das técnicas dialéticas para o convencimento do público e acrescentamento de fiéis ao rebanho de Cristo.

Quanto ao caminho para a conservação da fé entre os fiéis e a luta pela difusão entre os infiéis, a Igreja tinha dois meios de se proceder. Para os primeiros, a solução proposta era de cunho apostólico, doutrinal e moral simbolizada pelas missões entre os mais diversos povos e os seminários preparados para formarem sacerdotes aptos; para os outros, a solução do castigo e das perseguições da Santa Inquisição pareciam não funcionar como outrora. No século XVII, quando o empenho missionário adquiriu certa proeminência, a Inquisição, de certa forma, já teria concluído o seu trabalho, ou seja, a heresia não era mais um elemento de preocupação primordial no interior dos países católicos. Sendo assim, entre a violência e a brandura, a brandura pareceu ser a opção mais viável no contexto da estratégia católica pós-tridentina. Na Europa, era necessário conquistar-se os príncipes para conquistar seus súditos; fora do continente, o espírito missionário do trabalho da Companhia de Jesus, embora não tenha acrescentado muitos adeptos em sociedades e culturas complexas como Japão e China, será um grande exemplo de quão pretensiosa fora a reação católica.

Na conquista da América, por exemplo, a obra missionária possuía uma estrutura apoiada principalmente no uso da força; porém, na Índia, Japão e China, os missionários só podiam contar com suas próprias capacidades. Para isso, além das capacidades daqueles que estavam em missão no estrangeiro, a Igreja mostrou ser detentora de um espírito flexível e adaptativo. “Adaptar-se aos outros”, na interpretação corrente da Companhia de Jesus, era o meio necessário para atingir o objetivo de os “ganhar para Cristo”, “aprovando o que é digno de ser aprovado e suportando e dissimulando algumas coisas[..]”, logo, temos que, tratava-se mais de uma estratégia de fingimento e de astúcia num projeto de dominação de uma cultura diferente. A adaptação seria um meio, a conquista religiosa seria o fim: e o fim justificava os meios; esta era a maneira encontrada no seio da Companhia de Jesus para justificar-se as causas da não insistência demasiada nos símbolos da Cristandade para com as culturas “superiores e complexas”. Matteo Ricci e Alessandro Valignano, certamente foram os expoentes da Companhia de Jesus na defesa da estratégia da adaptação, e essas discussões levaram à diversas contendas no interior da S.J. , pois, também haviam aqueles que optavam pelo caminho da violência e da intimidação.

Em suma, podemos identificar que, a estratégia católica após o Concílio de Trento destinava-se a comover o coração dos fiéis através de novas formas de pregação e preparo dos sacerdotes, e que a atividade missionária (principalmente através da estratégia da adaptação), tinha então uma função complementar e corretora das graves deficiências da Igreja em uma época de grande descrédito principalmente do clero secular. A questão da penitência, e dos sentimentos de culpa causados pelos pecados continuaram a manter-se no centro do cristianismo moderno. Descobriu-se que a confissão poderia ser o elo mais próximo da Igreja para com o indivíduo e que assim, podia-se manter um certo nível de controle social e mental. A Igreja Católica a partir das resoluções tridentinas foi dotada de extrema sensibilidade em descobrir de que forma poderia continuar a manter a sua proeminência e como na essência do homem barroco, que era a conflitualidade entre a fé e a razão, conseguiria continuar a exercer o monopólio das consciências.



Bibliografia utilizada como referência para esta resenha.

VILLARI, Rosário. O Homem Barroco, Roma-Bari, Laterza, 1991, pp. 7-176, trad: Maria J. V. Figueiredo.
MARAVALL, José Antonio. La cultura del Barroco: análisis de una estructura histórica. Barcelona, Ariel,1975. Parte III “Elementos de uma visão barroca do mundo”.
PRODI, Paolo. Uma História da Justiça, São Paulo, Martins Fontes,2005, cap VI: A Solução Católico-Tridentina.
TREVOR-ROPER, H. R. Religião, Reforma e Transformação Social, Lisboa, Ed. Presença, 1981. Cap I e II