Karl Marx em A Ideologia Alemã intenta iniciar um processo de decomposição do sistema hegeliano defendida e desenvolvida por jovens hegelianos tais como Max Stirner, Bruno Bauer e Feuerbach. Fundamentalmente ele irá centralizar à sua crítica postulando-a de forma a desmobilizar a concepção idealista construída por Hegel de que um Espírito absoluto orientado por princípios racionais e universais que se manifesta metafisicamente na consciência dos homens seja o grande agente determinante do curso e evolução da História. Esta entidade denominada de espírito universal, através de sua substância, é tida como principio norteador de uma razão que governa o mundo e exprime seus meios e fins para efetivação de seu plano na totalidade da história universal, ou seja, ela agiu na consciência dos Povos e dos grandes indivíduos da história, e todo o seu percurso objetiva um fim último, a consciência desta substância, a consciência do homem que sabe de si e para si, a consciência de que o homem é livre enquanto homem.
Para esta vertente filosófica neo-hegeliana caracterizada por Marx de filósofos comerciantes que abarrotam o mercado alemão com os produtos da exploração do espírito absoluto, todos os indivíduos encontram-se ligados primordialmente a um interesse essencial, a sua inserção em uma determinada pátria, religião ou mentalidade são simples resultados da impressão do conteúdo advindo do próprio caráter universal e tal destina-se ao cumprimento de um fim em si.
Desta forma, os meios em que o espírito manifesta o seu conceito em suas determinações na história universal tais como substância e autoconsciência se tornaram o cerne do conjunto do sistema hegeliano, e segundo Marx, essa corrente neo-hegeliana havia se apropriado de categorias puras hegelianas e lhes dado nomes mais mundanos ou sua críticas nunca haviam atingido o conjunto do sistema. Marx aponta que a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner limitou-se basicamente à crítica das representações religiosas, ou seja, partindo-se das representações da religião real e da real teologia pretendiam-se alcançar à esfera das representações metafísicas, políticas, jurídicas e morais, e com isso declarou-se que toda relação dominante era uma relação religiosa e tal com os seus diversos cultos, culto do direito, do Estado, da moral. Jovens e velhos hegelianos consideravam tais representações – produtos da consciência tomada autonomamente por influência de um Espírito onipresente – como os autênticos elos que sempre uniram as sociedades humanas, e para alcançar relativa autonomia os indivíduos devem trocar a sua consciência atual por uma consciência humana e ou crítica.
No entanto, Marx antes de iniciar suas considerações sobre o que viria a ser a sua concepção materialista para opô-la ao idealismo de jovens e velhos hegelianos, identifica dois grandes problemas de sustentação: o primeiro é que todas estas formulações do âmbito das representações e possibilidades de tais teorias se limitam única e exclusivamente ao domínio dos pensamentos; e segundo que a nenhum destes filósofos pretendeu-se realizar a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, ou seja, o que Marx chama de conexão da crítica ao seu próprio meio material, sendo isto, nada mais que considerar a história humana como produto da existência de indivíduos humanos vivos – indissociabilidade entre a história da natureza e a história dos homens - que para se manterem ativos necessitam produzir seus meios materiais de vida, o que constitui o primeiro ato histórico do homem.
Marx sustenta em clara contraposição a velhos e jovens hegelianos, que o que os homens são coincide tanto com o que produzem como o modo como produzem seus meios de vida, e não a manifestação racional do espírito universal que imprimi o substancial nos homens: o homem, segundo Marx, não deve ser entendido como antítese do mundo natural e o terreno do espírito que para Hegel é tudo que ao homem interessa representa em Marx o próprio meio material de vida. Portanto, a extensão das forças produtivas e o conseqüente aumento da população daí advindo bem como o desenvolvimento da divisão do trabalho irão caracterizar, segundo a concepção materialista, elemento motriz da dinâmica da relação dos indivíduos uns com os outros, de nações para com outras nações, o que pode ser entendido na forma do intercambio espiritual e material tanto interno como externo, ou seja, representa que o intercambio dos homens entre si no processo de produção é a base de todas as outras formas de intercambio.
Logo, constatamos a contraposição empírica de Marx ao pressuposto de que a história universal fosse a exibição do processo absoluto do Espírito com seus diversos estágios na busca da autoconsciência de si e que as configurações destes estágios que são os povos históricos são representados através das particularidades de suas leis, arte, religião ou ciência.
Para Marx, é o grau do desenvolvimento das forças produtivas que denota essas particularidades e irá caracterizar as mais diversas formas do intercambio, este elemento é essencial para analisar o homem real e não os povos imaginários que vivem isoladamente como aponta os adeptos do sistema hegeliano. Em suma, Marx desconstrói a especulação e a mistificação neo-hegeliana ao propor que os indivíduos são determinados como produtores, e como tal, atuam de modo determinado e estabelecem entre si relações políticas e sociais determinadas, logo, a estrutura social, a produção de idéias, as diversas formas de representações da consciência e o Estado não emanam da determinação do fim último do espírito absoluto, mas sim, de um processo de vida condicionados sob determinados pressupostos de condições materiais que são independentes da sua vontade.
Assim, Marx concluiu que a consciência esta tanto apontada pelas correntes hegelianas, jamais poderá ser outra coisa que o ser consciente em um processo de vida real e material, ou seja, verificamos que os homens na história ao desenvolverem a sua produção e o seu intercambio material, transformam também a sua realidade, o seu pensar e os produtos de seu pensar, portanto, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.
A produção de meios que possam satisfazer as necessidades dos homens produz novas necessidades, para Marx este é o primeiro ato histórico que irá condicionar o curso e evolução da História, ao contrário de Hegel, que vê na busca pelo fim último o sentido do Espírito universal efetivar a realização do seu conceito. Logo, estamos constatando justamente a oposição entre a expansão das forças produtivas para satisfazer as necessidades materiais e espirituais dos homens e a necessidade que o Espírito tem de atingir o seu conceito. Tentarei elucidar através do exemplo da história de Roma antiga.
A idéia hegeliana de progressão ou desenvolvimento no curso da História verifica-se ao analisar-se o objeto no duro trabalho de si mesmo para atingir o seu conteúdo, ela só faz sentido mediante ao seu objeto e daí obtém o seu significado, como por exemplo, na história romana, em que o retrocesso/desenvolvimento de Roma só pode ser verificado como causalidade externa, o fato do Império Romano ter sido desmembrado constitui-se como um fim relativo e não absoluto, através deste entendimento a evolução seria sempre o resultado das transformações no plano da Espírito. Portanto, na Itália de hoje do qual uma de suas configurações tinha sido a Roma republicana ou imperial, neste longo e lento processo histórico, desvaneceram-se as determinações particulares para persistirem as configurações universais, logo, as invasões bárbaras teriam sido responsáveis na qualidade de agentes externos pela permanência dos caracteres universais do que hoje conhecemos como Itália.
Em Marx, por outro lado, não excluindo a possibilidade de encontrarmos outras causas para as invasões bárbaras que soçobraram o Império Romano, verificaríamos que Roma e os povos germânicos haviam atingido determinado grau de desenvolvimento de suas forças produtivas e aumento de população que a guerra tornara-se um instrumento para a realização do intercambio necessário para que continuassem satisfazendo suas necessidades materiais e espirituais, ou para que, a divisão do trabalho dos respectivos povos fosse novamente superada.
Podemos verificar também o choque entre as concepções materialista e idealista na contradição latente entre os interesses particulares e coletivos. Hegel utiliza-se do exemplo dos grandes homens da história universal tais como César, Alexandre Magno, Napoleão etc. Na interpretação hegeliana, tais indivíduos apreenderam este universal superior e converteram-no em um fim seu, ou seja, realizam um fim conforme o conceito superior do espírito. Trata-se do espírito oculto agindo nos homens histórico mundiais fazendo com que seus “discursos e suas ações” fossem o melhor que se podia fazer, que dizem aos homens o que eles querem e os mesmos concordam e aderem, enfim, são indivíduos que são irremediavelmente impelidos a realizar a sua obra, a sua paixão o seu arbítrio, porém, sem saberem, realizam simultaneamente o seu fim e o do universal, logo, seus interesses tomam a feição dos interesses coletivos.
Em Marx, é nessa contradição entre interesse particular e coletivo que o interesse coletivo toma na qualidade de Estado uma forma individualizada, separada dos reais interesses particulares e gerais e simultaneamente na qualidade de uma coletividade ilusória fixada nas bases dos laços sociais existentes tais como laços de sangue, família, tribo, escala da divisão do trabalho; sobretudo, quando tais interesses já forem baseados em classe como conseqüência do grau de desenvolvimento da divisão do trabalho. Com a matização das classes é que os indivíduos começam a se isolar em torno de determinados conglomerados das quais umas dominam outras e daí segue-se as lutas no interior do Estado, dos interesses particulares e coletivos, que segundo Marx, são “formas ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes”. Portanto, toda classe que aspira a dominação deve concentrar em si o poder político que irá mostrar-se na forma do interesse geral e os demais indivíduos cooperam involuntariamente para tal fim, ou seja, para fazer prevalecer os interesses particulares de uma classe dominante.
Desta forma, Marx pressupõe o fato de que é empírica a atuação de indivíduos singulares que fazem da extensão de suas atividades uma atividade histórico mundial, porém, caracteriza como “travessura do assim chamado espírito universal” a idéia hegeliana desse poder estranho aos homens que os impelem a agir e modificar o curso da História, para ele, esse poder que se torna cada vez maior e influente nos fatos históricos e nas relações humanas é em sua última instância o próprio mercado mundial, ou se preferirmos, os diversos estágios do desenvolvimento do sistema capitalista. Assim, verificamos que a concepção de História que Marx está defendendo é o reflexo do processo de produção que decorre da própria necessidade de produção material da vida imediata e as formas de intercambio engendradas por este processo. Portanto, ela nos apresenta e nos permite entender as diversas configurações da sociedade civil em suas diferentes fases como fundamento de toda a história, apresentando a sua ação enquanto Estado e explicando a partir dela as diversas formas de consciência e representações da mesma – a religião, a moral, as leis, as artes, as ciências. Ao contrário da concepção idealista, trata-se de explicar as formações ideológicas a partir da práxis material, entender a História como a soma de forças de produção numa relação historicamente construída entre os indivíduos e a natureza, ou seja, a teoria do materialismo histórico afirma que a própria soma de forças de produção, de capitais e de formas sociais de intercambio que cada geração encontra como algo estabelecido, é o fundamento real daquilo que jovens e velhos hegelianos representaram como “substância” ou “essência” do devir humano na construção da História. Sendo assim, o que Marx pretende é desconstruir a idéia de que a história se faça somente pela ação políticas dos príncipes e do Estado no qual o espírito universal emana e faz com que todos os indivíduos compartilhem em cada época histórica da “ilusão dessa época”. Em suma, Marx esboça na Ideologia alemã e na importância dada aos elementos acima mencionados o cerne do que irá constituir-se a teoria marxista.
Textos utilizados como referência:
HEGEL, G.W.F. A Razão na História: Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: edições 70,1995; p.27-154.
MARX,Karl; ENGELS, Friedrich – A Ideologia Alemã: Feuerbach. Ed. Grijalbo, 1977; p. 21-109.
MARX, Karl – O Capital: Crítica da Economia Política. Vol I, São Paulo: Abril, 1983.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
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