Luiz Felipe de Alencastro, nascido em 1946, em Itajaí, Santa Catarina, formou-se em história e ciências políticas na Universidade de Aix-em-Provence (França) e doutorou-se em história na Universidade de Paris-Nanterre. Atualmente é professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris-Sorbonne. Organizador do volume 2, Império – A corte e a modernidade nacional, da História da vida privada no Brasil (dirigida por Fernando Novais); é também autor de livro premiado pela Academia Brasileira de Letras: O Trato dos Viventes (2001).
Segundo Alencastro, a transferência da corte para a América portuguesa teve mais conseqüências do que somente a vinda dos aparelhos administrativos do governo da metrópole e da família real. Após o ano de 1808, iniciou-se um grande círculo de imigração de personalidades diversas, fidalgos, funcionários e dignatários régios que vieram exercer seus cargos no Brasil, e tinham suas rendas custeadas com o ouro e a prata retirada do Tesouro Real do Rio de Janeiro. Este empuxo burocrático, ainda trouxe milhares de militares, centenas de padres, advogados, “praticantes” de medicina, colonos de outras partes do Império português e até pessoas vindas dos setores mais comprometidos da monarquia espanhola que saem dos países sul-americanos tomados por revoluções republicanas e migram para o Rio de Janeiro, único refúgio legal da monarquia no Novo Mundo. Tal mudança irá ocasionar uma grande procura por mercadorias, serviços e bens diversos, reforçando cada vez mais a importância da baía da Guanabara como importante centro de atividades litorâneas e comércio marítimo, enaltecendo a ruptura do circuito de comércio continental que até então havia em larga escala, sobretudo, no período da mineração.
Após a Independência – quando a legitimidade do governo do Império sediado no Rio de Janeiro ainda não se encontrava totalmente assentada -, aliada a esta mudança nos rumos do comércio brasileiro, irá surgir assim, o primeiro conflito institucional e de interesses entre o privado e o público imperial no âmbito das municipalidades. Alguns desses conflitos acabaram desaguando em guerras civis enquadradas dentro do contexto das “revoluções regenciais”, colocando em xeque o alcance do poder exercido por autoridades locais eleitas pelos proprietários rurais e ocasionando o seu choque com o poder centralizador imperial.
No Império, assim como na colônia e de uma forma mais geral, no escravismo moderno, o direito – privilégio – de possuir escravos incide diretamente sobre a concepção de vida privada, e esta, além de confundir-se com a vida familiar, no decorrer do processo de organização política e jurídica nacional, fará com que a vida privada escravista desdobre-se numa ordem privada cheias de contradições e conflitos com a ordem pública. Assim, manifesta-se uma dualidade que atravessa todo o período imperial: o escravo é um tipo de propriedade particular cuja posse e gestão demandam, reiteradamente, do aval da autoridade pública. Luiz Felipe ressalta que, tributado, julgado, comprado, vendido, herdado ou hipotecado, o escravo precisa ser captado pela malha jurídica do Império, por este motivo, o Direito assume um caráter quase constitutivo do escravismo, e o seu enquadramento legal ganha uma importância decisiva na continuidade do sistema. Desta forma, havia, portanto, uma ordem privada específica, escravista, que deveria ser endossada nas diferentes etapas de institucionalização do Império.
No que se refere ao âmbito da privacidade e o poder municipal e provincial decorrem que a partir de 1828 e mais precisamente após o Ato Adicional (1834) em que são criadas as assembléias provinciais, o governo central subtrai a autonomia das municipalidades designando através dos presidentes de províncias – ou seja, em detrimento das autoridades locais escolhidas pelos proprietários e eleitores qualificados da região – aqueles que deveriam exercer o poder público em um nível regional; isto, para a elite escravista, afigurou-se em uma ameaça à ordem privada, isto é, à ordem geral. Como exemplos desse tipo de embate, em que se amalgama a ordem privada à ordem pública, podemos destacar a Balaiada ocorrida no Maranhão (1839-41) e em São Paulo e Minas Gerais durante a Revolução Liberal de 1842. Como cita Alencastro, o escravismo entranhava-se nos lares e no âmago da vida privada, logo, este deve ser um elemento de instabilidade que deve ser estritamente controlado. Em conseqüência, o poder, a segurança pública, devia tirar seu fundamento da esfera pública de dominação mais compacta, mais imediata: a municipalidade. Resumindo, no que se refere às revoluções do Império, todas elas tinham como convicção comum à respeito do consenso imperial: o respeito à ordem privada escravista.
Aliada ao escravismo desenvolvia-se outras formas de entrelaçamento da política regional com a vida privada no Império como a sugeriu a análise consagrada de Gilberto Freire acerca do paternalismo e do patriarcalismo rural e urbano. O próprio sistema eleitoral desta época fazia com que senhores de engenho e fazendeiros mantivessem um contingente mais ou menos constante de agregados – seu curral eleitoral – em suas propriedades; sendo assim, deveres e direitos dos senhores e de seus dependentes encontravam um prolongamento institucional no sistema partidário e eleitoral.
A escravidão está tão fortemente atrelada aos hábitos e comportamentos no Império, que a supressão do tráfico negreiro irá fazer sentir seus sinais até na balança comercial brasileira no período pós 1850 em que constata-se que o valor das importações do Rio de Janeiro quase duplicam-se. Os mercados e lojas da rua do Ouvidor inundam-se de bens de consumo semiduráveis, duráveis, supérfluos e jóias destinados aos consumidores endinheirados da corte e das zonas rurais vizinhas, que cessado o tráfico negreiro, não tinham onde empreender o excedente de seus capitais. Introduzindo o Rio de Janeiro no contexto da modernidade no que se refere ao consumo capitalista, mercadorias-fetiche como o piano irá ser um objeto ostentório de grande desejo por parte das elites.
Sem se reter somente aos aspectos da atrelação do escravismo à vida privada no Império, Alencastro irá colocar em discussão uma série de outros assuntos relativos a própria evolução em direção a modernidade nacional brasileira. São expostas questões como a privatização do carnaval e o seu surgimento, movimentos lusófobos e nativistas acerca da mudança de nomes, a evolução da prática sexual e a emancipação da vida privada à liturgia católica, entre outras curiosidades.
Ao lado dos surtos violentos de antilusitanismo e das pretensões por parte da família imperial de se constituir uma sociedade européia no Brasil, o nacionalismo brasileiro desenvolveu uma maneira peculiar de ser, um comportamento individual, privado, que tinham um significado público de afirmação da singularidade nacional. Estas dizem respeito principalmente às modas da corte e os costumes do império. Estas representações variam desde discursos nacionalistas hiperbólicos totalmente xenófobos até cortes de cabelo, a preferência dos charutos em vez dos cachimbos, ou seja, Alencastro ilustra alguns exemplos em que os brasileiros tiveram de apartar-se da moda ocidental por causa do chão social do país.
O capítulo ainda traz outras formas de desvios do comportamento brasileiro com relação ao modelo europeu como: o uso das mucamas ou amas de leite caracterizando uma especialização econômica da mulher cativa no trabalho doméstico e no aleitamento dos filhos dos senhores; o uso dos tigres – escravos encarregados de levar os dejetos domésticos até a praia – malgrado as endemias de verão e a ausência de sistemas de esgoto. E as contradições do próprio sistema escravista com relação ao ambiente epidemiológico da corte com os surtos de febre-amarela, cólera, varíola e outras doenças que fustigaram o Império: no caso da cólera, por exemplo, em que se chegou a cogitar a permissão dos escravos de se usar sapato – ato não permitido dado seu estatuto de cativo – para a manutenção da boa saúde da escravaria e o não alastramento das doenças.
Paralelamente, surgem manuais médicos dirigidos aos fazendeiros e versando sobre o tratamento dos escravos em que os preceitos médicos assumiam um caráter essencialmente mercantil; aparecem teorias que justificam a diferença entre o branco e o negro não somente pela cor da sua pele, mas também, “por uma limitação em sua organização cerebral, que não lhe permite levar ao mesmo grau a extensão de suas faculdades intelectuais” segundo um corrente Manual do fazendeiro da época. As teorias cientificistas acabam por combinar-se com a hierarquia social preexistente para também justificar o escravismo, e segundo Alencastro, estas novas idéias passaram a ratificar a prática e os argumentos tradicionais de outrora. Sendo assim, justificar-se-ia a escravidão no Brasil não somente através do caráter evangelizador que era largamente professado por Antonio Vieira no período colonial, mas agora também, pelas suas deficiências mentais.
Em um país escravista, possuindo no mínimo, segundo o primeiro censo de 1872 – que tiveram dados forjados quanto à cor de pele dos escravos e a religião destes -, 20% da população era dita preta e 38% mulata; o problema mais geral da identidade iria se constituir em uma fonte permanente de tensão social. Sendo assim, surgem inúmeros casos de livres e libertos que procuravam parecer brancos e casos em que se tenta caracterizar a escravidão como um estatuto exclusivamente reservado aos negros, pretos e pardos. O capítulo traz ótimas fontes iconográficas – desenhos, gravuras e fotografias – para a ilustração desses eventos citados acima no período imperial.
Ao fim do capítulo Alencastro traça um paralelo entre duas obras literárias relativas ao mal que os senhores faziam aos seus escravos no contexto do colapso da ordem privada escravista. Uma seria a obra intitulada A cabana do Pai Tomás (1852) escrita pela norte-americana Harriet Beecher Stowe e Vítimas–algozes (1869) de Joaquim Manuel de Macedo, em que Alencastro identifica uma profunda diferença entre as duas obras que ajuda a elucidar a questão do trato negreiro. Para a norte-americana, a escravidão era ruim porque transformava o cativo num coitadinho, ao passo que, para Macedo a escravidão era péssima porque tornava o cativo um criminoso, ou seja, torna o escravo carrasco de seus companheiros de estatuto. A importância desta análise se dá, uma vez que essas noticias abundavam constantemente nos jornais da época denunciando senhores por mal trato de seus cativos. A violência do tratamento escravista – leia-se como desordem privada escravista - será um fator de grande importância para a ruína do próprio escravismo e da ordem pública.
Por fim, os condicionantes históricos desse processo de endossamento do escravismo na ordem privada do Império configuram duradouramente o cotidiano, a sociabilidade, a vida familiar e a vida pública brasileira. A idéia central do capítulo de Alencastro será que o escravismo não se apresenta como uma herança colonial, ou seja, como um vínculo com o passado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. O escravismo apresenta-se, como um compromisso para o futuro: O Império irá retomar e reconstruir a escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade. A supressão do tráfico negreiro minaria, assim, as bases da ordem privada escravista, bem como a reprodução dos escravos e a própria reprodução da classe escravista. Enquanto no decorrer do século XIX, dominado pelo trabalho assalariado e livre, o escravismo apresentava-se no Brasil como uma exceção, após a sua Abolição em 1888, muitas das formas de relação entre proprietários e empregados, por exemplo, ainda seriam tributários da ordem privada escravista que havia vigorado três séculos e meio no Brasil.
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