sábado, 27 de novembro de 2010

O governo civil de John Locke e a Carta de Direitos do Homem e do Cidadão (1789)

O século XVIII, ou o século do Iluminismo, é fortemente marcado pela secularização e por uma nova postura espiritual em todas as atividades humanas . Verificamos uma evolução brusca do século XVII para o XVIII, nos termos de uma mudança na crença no direito divino para o direito natural, da divisão da sociedade em classes desiguais para a igualdade entre todos os homens, em suma, na pretensão pelo fim das sujeições, autoridades e dogmas que regulavam a vida dos homens no século anterior . De 1680 a 1715 percebemos o florescer de uma nova perspectiva no que concerne à resolução de uma série de antigos problemas tais como a existência e natureza de Deus, a liberdade, os direitos do soberano e a formação do estado social, assim, nesse âmbito, é que se darão as transformações que levaram da estabilidade ao movimento, do antigo ao moderno .


Desta forma, de um Iluminismo inicial ao Alto Iluminismo, que vai de Descartes, Espinosa e Locke à Kant, Rousseau e entre outros, é que se consolidará a mudança de atitude fundamental com relação à estruturação de uma consciência moderna que se baseia na destruição da ordem estática da sociedade e pelo desprezo da tradição; a palavra de ordem é que os homens tenham a coragem de se servir do próprio entendimento e abandonar a sua menoridade culpada . Portanto, o projeto das Luzes absorve e articula muitas opiniões, que antes, estavam em conflito; de maneira que podemos identificar que as Luzes são muito mais uma “época de conclusão, de recapitulação, de síntese – e não de inovação radical” , logo, será através das idéias centrais desse projeto – autonomia, finalidade humana de nossos atos e a universalidade –, e sobretudo, pelo forte apreço pela liberdade e a igualdade, que este projeto visará retirar os homens da antiga tutela do Antigo Regime e buscar uma nova base de legitimidade para as sociedades políticas.


Um olhar atento aos dezessete artigos da Carta de Direitos do Homem e do Cidadão redigida e aprovada pela Assembléia Nacional Constituinte da França revolucionária em 2 de outubro de 1789, nos revela, claramente, a forte presença de um desses modelos inspiradores do Iluminismo, baseada na obra de John Locke, o Segundo Tratado do Governo(1698). Pai do iluminismo inglês, ideólogo da burguesia britânica e porta-voz da Gloriosa Revolução (1690), criou um modelo de filosofia política que pretendia identificar “a verdadeira origem, alcance e finalidade do governo civil”, e que acabou se tornando um dos mais importantes fundamentos ideológicos da Revolução Americana(1776) e da Revolução Francesa(1789), cujo eixo central orbita em torno da liberdade, entendida como “fundamento de tudo o mais que um homem possa ser ou ter” , fermento este, catalisador do processo de consolidação dos constitucionalismos, do ideal de Estado de Direito, das liberdades civis e das demais instituições do Estado em prol do bem comum, da conservação do direito natural e da preservação da sociedade.


Partindo do pressuposto da existência de um estado de natureza regida através de um direito natural cuja lei é a própria razão, que é inata ao homem e que não se circunscreve em nenhum recorte cronológico ou período histórico, Locke verifica que todos os homens se encontravam em um estado de igualdade, não havendo distinção ou subordinação fundamental que se possa fazer entre eles, e quando se dá o exercício de uma forma de poder que um homem exerce sobre o outro, este o faz em prol do cumprimento desta lei natural do qual todos os homens são agentes e zeladores e nunca como uma forma absoluta ou arbitrária. No entanto, o estado de natureza por si não oferece garantias quanto ao pleno funcionamento desta dinâmica de convívio entre os homens, pois essencialmente os homens passam a advogar em suas próprias causas, e é aí é que surge a necessidade do homem de se inserir em uma comunidade ou constituir um corpo político e destruir os laços do estado de natureza, mediante um pacto contratual de confiança e consentimento para com um governante, ao qual será dado o poder político e que sob a égide do governo civil, será o responsável por dar coesão a este corpo político e a assegurar os demais direitos de seus súditos.


O governo civil para Locke é o “remédio adequado para os inúmeros e graves inconvenientes do estado de natureza” e agirá como princípio garantidor de todas as liberdades, não sendo o individuo obrigado a se encontrar sujeito “a qualquer outro poder legislativo, para além daquele que tenha sido estabelecido na comunidade com o seu consentimento”, ou, em outras palavras, trata-se da liberdade dos homens em satisfazerem suas vontades, no gozo do seu direito natural, em todas as coisas que não estejam prescritas pela norma ou que não prejudiquem que o próximo exerça os mesmos direitos. Ao observarmos o segundo e terceiro artigos da Carta de Direitos francesa, que versa sobre a finalidade da constituição de uma associação política visando à preservação de direitos imprescritíveis do homem e do princípio de soberania da Nação do qual emana os poderes dos governantes, podemos perceber a clara presença da tese lockeana e do Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau ; desse modo, da passagem do estado natural ao estado civil, verificamos a necessidade de que a forma com que esse pacto social seja feito requer amplo consenso e confiança do povo para com o governante.


Segundo Locke, o grande e principal fim que conduziu a união dos homens em sociedade e a sua submissão a um governo foi a preservação de suas propriedades. No entanto, a propriedade que aparece na Carta de Direitos do Homem e do Cidadão como um direito inviolável e sagrado, é entendida por Locke a partir da noção de que a razão natural dá aos homens o direito a sua própria preservação e de que “cada homem é proprietário de sua própria pessoa”. O homem se apropria da propriedade, não através de cercas ou marcos de divisão, mas sim com o “trabalho do seu corpo e o labor das suas mãos que são seus”; ao adicionar algo de seu, transformando alguma coisa em algo diferente daquele estado em que a natureza colocara através do produto de um trabalho qualquer, é por esta via que o homem alcança a propriedade. Portanto, o início da propriedade se verifica precisamente no emprego do trabalho e esta foi a condição que a separou daquilo que era propriedade comum de todos, nos limites delineados pela utilidade e do não prejuízo de outrem.


Por não existir um juiz conhecido e imparcial no estado de natureza, é que se torna necessário o estabelecimento do governo civil através de um sistema de direito estabelecido com rigidez, recebido e aceite pelo povo com amplo consentimento mediante uma medida comum que possa solucionar as possíveis contendas que possam surgir entre os homens. Portanto, os homens devem abdicar do seu poder singular de punição na esfera do direito natural e transferi-los a aquele que for eleito entre todos para desempenhar o seu papel tanto em termos do poder legislativo como do executivo que jamais poderá ser utilizado para outra finalidade que não seja a paz, a segurança e o bem público do povo. Deste mesmo modo, denotamos no artigo sexto da Carta à semelhança da concepção de Locke, a definição da Lei como uma expressão da vontade geral que deve ser a mesma para todos seja para punir ou para proteger.


Tal como a reivindicação básica do Iluminismo que se refere à autonomia do sujeito e as idéias de Locke e Rousseau que se fazem presentes no texto da Carta de Direitos do Homem e do Cidadão, pode-se perceber uma busca pela restituição de um direito original que havia sido perdido, tendo estas teorias como contraponto, a análise das condições humanas sob ausência de qualquer estruturação social, ou seja, no estado de natureza. Nestes termos, é que os homens deveriam abdicar dos diversos poderes que outrora eram detentores no estado natural para passarem a formar as sociedades políticas através do governo civil, para que pudessem ter seus direitos básicos e inalienáveis garantidos e que assim gozassem dos benefícios do ordenamento social.


Resumindo, a filosofia política proposta por Locke e Rousseau constituiu um dos mais importantes legados do século XVIII no que concerne a consolidação das liberdades e dos direitos dos civis encontrando uma expressão prática através da Carta redigida e aprovada no auge da Revolução Francesa. Talvez não fosse a pretensão destes pensadores que fizessem uma verdadeira revolução na forma com a qual se dá a política entre os homens, o próprio Locke teve intenções de com o Segundo Tratado do Governo legitimar Guilherme de Orange, porém, estas idéias circularam pela Europa e conseguiram sobreviver a sanções, proibições e até perdas chegando até um ponto nevrálgico que era a França revolucionária; a partir daí, fora dado um passo a mais rumo ao que caracterizou o século XVIII como a Era das Luzes.

Bibliografia

L. Kriemendahl (Org.). Filósofos do Século XVIII. Uma Introdução. São Leopoldo: Ed UNISINOS

P. Hazard. A Crise da Consciência Européia: 1680-1715. Lisboa: Ed Cosmos, 1948, 15-206.

E. Kant. Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarüng? . Kant´s gesammelte Schriften. (Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo? Escritos recolhidos por Kant). Berlim: Academia Prussiana de Ciências(e Sucessores),1900, volume III, 35.

T. Todorov. O espírito das Luzes. Trad. Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Editora Barcarolla, 2008, 13-29.

J. Locke. Segundo Tratado do Governo: Ensaio sobre a verdadeira origem, alcance e finalidade do governo civil. Fundação Calouste Gulbekian, 2007.

J. Rousseau. O Contrato Social. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009.

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