sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A batata na imaginação materialista - resenha: A Prática do novo historicismo – Catherine Gallagher & Stephen Greenblatt



A batata e os seus usos ao longo da História nos remetem à importantes questões e debates no âmbito das mentalidades que vão além de um senso comum que credita o seu surgimento e utilização durante a Idade Média e que a associa batatas e camponeses, camponeses e Europa Medieval. Ao contrário, a introdução da batata na Europa remonta ao século XVII trazida da Virgínia para as ilhas britânicas da Irlanda, desde então, a batata passou a representar uma espécie de alimento primordial e suscitou diversos debates especialmente durante os anos 1790 – época dos motins da fome - e início do século XIX, como também influenciou o movimento de historiadores a partir dos anos 70 do século XX, sobretudo a corrente do novo historicismo liderada por Stephen Greenblatt, a analisar a relação entre história do corpo e as formas mais antigas do pensamento materialista.

O cerne do debate da batata encontra-se justamente na controvérsia a respeito dos méritos do tubérculo em comparação ao trigo para a alimentação das classes mais pobres e primordialmente a classe trabalhadora. Este debate surgiu com grande força em fins do século XVIII e tomou novo ímpeto na década de 1830, duas épocas essas de intensa discussão sobre a legislação referente ao pobres. Em geral, a controvérsia centrava-se no fato de que uma unidade de produção de batatas era capaz de alimentar três vezes mais pessoas do que um trigal nas mesmas proporções, no entanto, havia duvidas quanto a desejabilidade desse novo arranjo de coisas pelo corpo social consolidado, pois estavam embutidas aí questões de ordem política, econômica e social como os níveis salariais adequados (indexação de seu valor à um produto básico mais barato que o trigo), os efeitos sobre o crescimento populacional e entre outros fatores.

Os polêmicos da batata lançaram críticas contundentes que prediziam entre a miséria e a riqueza devido a adoção do tubérculo, uma vez que, o sistema até então vigente era sobretudo baseado no trigo, onde o custo do trabalho era fundamentalmente baseado no custo do trigo, como também o trigo controlava a oferta de mão de obra e as calorias que ela consumia. A retórica do debate em torno das batatas, caracteriza a gente da batata como radicalmente diferente da gente do trigo, pois a batata por sair debaixo da terra, foi vista pelos escritores adeptos do mito do corpo autóctone entre fins do século XVIII e início do XIX como algo simbólico, que traz as pessoas para fora da terra. Caracterizada pela sua primitividade em comparação aos outros vegetais, algo que representa somente a mera subsistência, para os detratores da batata simbolicamente ela representava o fim virtual da cultura.

Como todos os significantes, como sugere Raymond Willians em seu The Sociology of Culture, surgia assim a distinção entre matéria e ideia, e sua localização no plano imaginado e de existência anularia assim a separação entre a base material física de uma superestrutura ideológica ou uma necessidade biológica de uma exigência cultural. Como Willians salienta, a comida tem seus momentos “significativos” e podemos analisá-la semioticamente para mostrar os diversos significados sociais de como e o que as pessoas preparam e consomem como comida. A crítica dos autores deste ensaio recai sobre Willians no sentido de que quanto mais esse alimento representasse a simples nutrição, ou quando servisse somente para atender as necessidades biológicas, menos “significaria” e menos “cultural” haveria de ser.

A batata na imaginação materialista pode ser analisada sobre a perspectiva da comparação com a hóstia, enquanto a hóstia representa o corpo e a carne de cristo como algo que lhe da acesso ao divino, a batata ameaça transformar a cultura em natureza ou diluir o significado na matéria, pois há uma alteração fundamental, pois o Real passa a ser a base física de nossa existência. Nos termos de Willians, a batata apresentaria um excesso de matéria e a Eucaristia um excesso de significação, onde a batata poderia ser a antítese da Hóstia eucarística. Ora tal analise toma os mesmos rumos quando comparadas e contrastadas do pão que advém igualmente do trigo. A possibilidade de subsistir através da batata a tornou comparável ao pão ou substituta do alimento que é o símbolo de todos os outros alimentos. O pão exerce uma função de união sobre a cultura europeia, detentora de todo um ciclo social do plantar, germinar, brotar, crescer, amadurecer, colher, debulhar, moer, misturar, amassar e assar. Os significados simbólicos do pão orbitam em torno da comunidade humana, a assistência mútua e confiança nos ciclos naturais de morte e ressurreição, se não através da transubstanciação a própria carne de Cristo. A batata ao contrário, não é formada pelas mãos humanas, elas brotam diretamente da terra não transitam pela sociedade e também não circulam numa economia, haja visto que na década de 1830 é que o nexo dinheiro veio a substituir o nexo pão.

O pão representa a cooperação de diversas empresas humanas e pessoas entre si numa sociedade que implantou a divisão do trabalho, mas onde todos partilhavam do mesmo alimento, portanto, se a Eucaristia participa da divindade cujo produto é o pão da cultura, a batata passou a representar o ressurgimento de um estado pré-social e passa a refletir o isolamento dos pobres que estão à margem da civilização.

Segundo Gallagher e Greenblatt, os ingleses possuíam um nome para esse estado de coisas: Irlanda. A Irlanda era um lugar sem pão, com batatas (fonte de degradação carnal) e hóstias(simbolo do fervoroso catolicismo irlandês e lutas de resistência ao colonialismo inglês). No entanto, de maneira geral, os detratores dos comedores de batata mostravam pouco interesse explícito pela religião, como demonstrou o mais ferrenho retórico “antibatata” Willian Cobbett em 1834 ao visitar a Irlanda que viu o campesinato irlandês como gente que vive literalmente debaixo da terra, à semelhança de seu alimento. Segundo Cobbett, a batata expulsou o pão da cultura das casas desta ilha, os irlandeses são descritos como nojentos que vivem e se alimentam em conjunto com seus animais comendo “barro”, a batata é vista como “a raiz de toda a miséria”.

As descrições de Cobbett dos camponeses irlandeses devorando a raiz suja que emanava de “buracos” no chão - “os camponeses podem comer terra, portanto, não precisamos nos preocupar com eles” - denotam uma combinação de extrema privação e abundância com a noção de um povo tão enraizado no solo que não pode ser retirado nem pela destruição de seus cereais. Assim, com uma planta trazida do outro lado do Atlântico, os irlandeses puderam suportar a devastação trazida pelos colonizadores ingleses bem como superar a economia de escassez imposta.

Em fins do século XVIII quando toma grande força o debate em torno da batata, em contraposição à Cobbett que acha que “ela inflingiu mais males à humanidade que a peste e a guerra juntas”, os defensores ingleses dela admitiam que o seu uso poderia ser benéfico para manter os salário baixos e assim fazer com que trocassem o pão de trigo pelas batatas. Arthur Young foi um importante defensor da batata enquanto suprimento alimentício infalível, suas descrições ilustram a excelente fecundidade do tubérculo. Onde Cobbett via miséria, Young constatava abundância e fertiilidade. A descrição de Young no qual uma família acocorada se alimentava junto aos seus animais de uma grande travessa de batatas é vista por Cobbett como degradante e nojenta, ao passo que, para Young essa imagem remonta a um passado remoto em que os animais viviam em harmonia com os homens, o que para nós interessa aqui é a relação entre os corpos humanos e a terra como fundamento da existência material.

A demarcação da batata pretendida por Young nos anos 1790, era compartilhada por outros “melhoradores” do século XVIII, que viam na comida barata e um padrão de vida mínimo de desenvolvimento humano, o próprio passo da marcha do progresso. No entanto, essa fé que grandes lucros através de grandes propriedades privadas e controle de terras acarretariam em alimentos mais baratos assim como uma forma de compensar os pobres pela perda de direitos comuns como as glebas e proteção contra todas as contingências tais como: guerras, perda de safras de trigo, esgotamento de pastagens ou legislação protecionista acabaram fracassadas. Estava implícito que nessa batata de Young estava o sonho de uma humanidade que desejava subjugar suas necessidades materiais pela vontade, assim como outras panaceias do Iluminismo.

Cobbett via nas batatas a violação da “economia moral das massas”, como nos ensinou E. P. Thompson em 1971 em a A Economia moral das multidões, o termo designa uma “visão tradicional consistente de normas e deveres sociais, de funções pertinentes aos diversos partidos no seio da comunidade” que durante o século XVIII eram diretamente opostas aos princípios do livre mercado da antiga economia política. Desta maneira, embora ele ignore a presença da batata, Thompson usa este modelo para explicar os diversos motins da fome que se irradiaram pela Europa e que atingiu o seu ponto máximo com a morte de padeiros e moleiros, bem como do próprio Antigo Regime e para criticar os historiadores que desprezam fatores culturais para analisar comportamentos econômicos.

Segundo Thompson, a consciência histórica dos amotinados precisa ser reconstruída e e indaga-se até que ponto o comportamento deles foi modificado pelo costume, a cultura e a razão? Desta maneira, ele caracteriza as sublevações do século XVIII como uma complexa dinâmica de negociações conflituosas no interior do “nexo pão”, portanto, a consciência histórica dos amotinados não diferia da de seus governantes, todavia, a fome e a escassez continuam a permanecer como estímulos materiais auto-evidentes, ou seja, a fome era vista como parte integrante da experiência corpórea daquela economia. Nos tumultos e agitações estava a preservação do velho nexo do pão (oposto ao mais recente nexo dinheiro) e instaurava delicados pontos de atritos nas rudes negociações com as massas. A economia moral, assim era um estímulo fisiológico-cultural: incluir-se numa comunidade era também sentir fome, o debate das batatas nos aponta para a necessidade de historicização daquilo que se passava por alimento e daquilo que se sentia como fome.

Para Cobbett, comer batatas assinala a fronteira não apenas de ter fome e saciá-la, mas de partilhar do alimento de uma civilização e privar-se dela. A batata é uma ameaça aos pobres por que é apenas alimento, apenas subsistência, não-organizada numa economia de direitos e deveres recíprocos. Se a batata ameaçava romper com o nexo pão através da violão da economia moral por forças os pobres a viver numa economia de subsistência e produzir cereais caros para o patrão, os teóricos como Thomas Malthus e David Ricardo veem uma ameaça não menos grave aos princípios da economia política, ou seja, ao nexo dinheiro. O mercado de trigo já era visto pelos economistas políticos como uma forma primária de controle da reprodução dos camponeses, dessa maneira fizeram grande oposição quanto a sua adoção como alimento básico.

Thomas Malthus em Um Ensaio sobre a População de 1806 tornou-se um importante guia para os detratores da batata e centra a sua análise na miséria que viria após a abastança que traz ao mundo “uma população não exigida pela quantidade de capital e emprego existentes no país” cuja consequência acarretaria na queda geral dos preços e da mão de obra por causa da concorrência advinda do crescimento populacional. Quando Young dizia que a batata garantiria a “subsistência”, Malthus entendia “subsistência” não como mero alimento mas também “moradia e vestuários decentes”. A mão de obra só pode ser escassa quando a comida é relativamente cara, portanto, comida barata cria excesso de população, a batata é a raiz da miséria porquê é a raiz da abundância nos dizeres de Malthus. Uma cultura de comercialização já amplamente consolidada como o trigo facilmente acusaria a presença de pessoas demais, assim subiriam os preços do trigo encorajando a abstinência sexual e desencorajando o aumento populacional. Segundo a visão de Malthus, duas necessidades imediatas dos seres humanso são: se alimentar e copular.

Os comedores de batata para Malthus literizavam o hommo appetitus, este antissocial e desprendido, independente de quantidade de mão de obra disponível, o contrário do hommo economicus de Adam Smith onde o a economia se faz necessária para emprestar confiabilidade ao corpo .

Com batatas só o que se pode fazer são filhos e os quais só o que farão serão batatas, este é um fator importante verificado por Malthus e Ricardo que poderiam causar um desequilíbrio na base do sistema da economia política. “Pobre” seria daí para frente uma categoria fixa e nisso a batata ajudaria dizendo quem necessita da ajuda da Igreja e quem dela pode facultar.

O debate em torno da batata nos traz muitos pontos para se pensar o status confuso do corpo no pensamento materialista do século XIX, e como o surgimento de um alimento pode representar uma humanidade deprimida, que não se organizou em um todo social ou sistema econômico e vive mergulhada na lama.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Resenha: Hayden White – Trópicos do discurso: ensaio sobre a crítica da cultura.

A Tropologia, o Discurso e os modos da consciência humana

Quando tentamos fazer uma explicação ou relação de tópicos problemáticos como natureza humana, cultura, sociedade ou história, nunca conseguimos o dizer com precisão no sentido exato que queremos, pois, o nosso discurso sempre tende a escapar dos nossos dados e voltar-se para as estruturas da consciência; portanto, os dados sempre obstam a coerência da imagem que estamos tentando formar.

Hayden White examina aqui o problema das relações entre descrição, análise e ética nessa área, estudando autores tão diversos como Piaget e sua teoria do desenvolvimento; Freud e a interpretação dos sonhos; E. P. Thompson e sua história da classe operária inglesa – além de outros pensadores como Vico, Croce e Foucault – para mostrar como o discurso espelha ou repete as fases pelas quais a consciência deve passar no seu processo de apreensão, de forma a organizar a “realidade concreta”. Para o autor, em face dos obstáculos enfrentados pelas ciências humanas, seria possível adotar estratégias semelhantes às da arte e da literatura. Dessa perspectiva, arte e ciência deixam de ser formas excludentes de conhecimento.

Todo discurso originalmente esta imbuído destas diferenças de opinião na formulação de uma dúvida com relação à própria autoridade e ocorre principalmente quando tentamos identificar os elementos contidos em seu tempo e discernir os tipos de relação que eles exercem. Hayden White nos aponta uma disparidade entre o discurso, ou seu modo de enunciação, de um lado, e o significado de outro, ou seja, ele nos fala de uma união do significado e do significante no próprio símbolo, portando numa busca de adequação à mensagem que queremos transmitir através de uma linguagem.

Assim, podemos dizer que a presente obra de Hayden White se ocupa do elemento trópico contido em todo discurso, o trópico é a sombra da qual todo discurso realista tenta fugir, é o processo pelo qual todo discurso constitui os objetos que ele pretende descrever realisticamente e analisar objetivamente. A palavra trópico, de tropo, deriva de tropikos ou tropos, que no grego antigo significa “mudança de direção”, “desvio” ou “maneira”. Para os retóricos, gramáticos e linguistas, os tropos podem significar desvios do uso literal da palavra ou “próprio” da linguagem que não são sancionadas pelo costume ou pela lógica. Os tropos geram figuras de linguagem ou pensamento mediante associações que estabelecem com diversos conceitos relacionados ou não com o tropo utilizado. Como verificou em Harold Bloom, um tropo pode ser um equivalente linguístico de um mecanismo psicológico de defesa(uma defesa contra o sentido literal do discurso assim como as regressões e ou projeções se tornam defesas contra a percepção da morte na psique).

O discurso é o gênero em que predomina o esforço para adquirir este direito de expressão, com crença total de que as coisas podem ser expressas de outra forma, “toda interpretação depende mais da relação antitética entre significados que da suposta relação entre o texto e o seu significado”, concluía Harold Bloom. Segundo White, é possível mostrar que todo texto mimético deixou alguma coisa fora da descrição de seu objeto ou lhe acrescentou algo que não é essencial para que um leitor possa compreendê-lo. Numa análise literária, toda mimese se apresenta como que algo deformado que pode até servir de ensejo para fazer uma descrição mais realista ou mais “fiel aos fatos”.

Segundo Hayden White, a técnica convencional para julgar a validade dos discursos em prosa, como por exemplo, dos tratados políticos de Maquiável ou de Locke, ou o ensaio sobre a desigualdade de Rousseau ou as histórias de Ranke, consiste em examiná-los inicialmente quanto a sua fidelidade aos fatos do tema que está sendo analisado, em segundo lugar, examinar a observância dos critérios de coerência lógica que o silogismo clássico represente. Esta técnica de crítica age em visível oposição a própria prática do discurso, pois o intuito do discurso é constituir terreno onde se pode decidir o que contará como um fato na matéria em consideração e determinar qual o modo de compreensão mais adequado ao entendimento dos fatos assim constituídos. O discurso, numa palavra, é essencialmente um empreendimento mediador, é ao mesmo tempo interpretativo e pré-interpretativo: é sempre sobre a própria natureza da interpretação e sobre o tema que constitui a ocasião de sua própria elaboração, em um movimento diatático.

O discurso sempre se volta para a reflexividade metadiscursiva e todo discurso sempre é sobre o próprio discurso e sobre os objetos que compõem o seu tema. Assim considerado como um gênero, todo discurso deve ser analisado em três níveis, no da descrição (mimese) dos dados encontrados, no do argumento ou narrativa (diegese), que corre paralelamente à matéria narrativa, e analisar o nível aonde elas se combinam (diataxe).

A compreensão é um processo de tornar familiar o não-familiar ou “estranho”, este processo só pode ser tropológico na essência, pois o que está envolvido na conversão do não-familiar em familiar é uma criação de tropos que em geral é figurativa. Portanto, os discursos se manifestam através das figuras de linguagem como as metáforas, metonímias, sinédoques e até mesmo a ironia. Assim, sendo o discurso um produto dos esforços da consciência para estabelecer um acordo com domínios problemáticos da experiência, ela serve de modelo para as operações metalógicas pelas quais a consciência, na práxis cultural geral, efetua tais acordos com o seu meio social e ou natural.