quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Gil Vicente e o Auto da Barca do Inferno: uma imagem das camadas sociais portuguesas no século XVI



A obra de Gil Vicente tem sido muitas vezes analisada através de leituras específicas e ou particularistas, não somente com o intuito de caracterizar a vida de certos meios da sociedade portuguesa do início do século XVI, mas também para ajudar a definir uma posição ideológica do autor.

Gil Vicente nasceu por volta de 1460-1470 e viveu durante um período de intensa centralização do poder real, época também da Expansão Marítima Portuguesa. A sua vasta produção literária estende-se de 1502 a 1536, abrangendo, assim, parte do reino de D.Manuel I e parte do reinado de D. João III. Suas obras, nos primeiros anos, são de caráter fundamentalmente religioso e representadas em momentos de maior reflexão e crença religiosa, como no Natal, Quaresma ou quando há uma procissão de Corpus Christi. Porém este não é todo o gérmen de sua produção literária e crítica. A partir de 1506, qualquer de suas peças, seja de caráter religioso ou de característica profana, por ocorrência das festas religiosas ou em exortação de acontecimentos importantes, como a chegada de uma armada na Índia, a partida de uma expedição para o Norte da África ou o nascimento de príncipes, qualquer uma dessas representações conterá com maior ou menor profundidade a essência da crítica de Gil Vicente, ou seja, a condenação moral ou social da sua sociedade portuguesa contemporânea.


Gil Vicente é um sujeito que nos surge constantemente ligado à Corte, à família real, representando um homem profundamente religioso e que vive numa época de grandes polêmicas e agitação de ordem espiritual, num país que vive em conflito interior com a questão judaica e cujo soberano combate pelo estabelecimento do tribunal do Santo Ofício da Inquisição. A intenção deste trabalho é analisar de forma sucinta e clara alguns dos níveis da crítica de Gil Vicente, ou seja, quanto ele pretende destruir e o que ambiciona recuperar do quadro de valores que rege a sociedade portuguesa de seu tempo. No entanto, nos focaremos especificamente no Auto da Barca do Inferno, publicado em 1517, que fora pela primeira vez encenado na câmara da rainha D. Maria de Castela, na presença do rei D. Manuel I e de sua irmã D. Leonor, a Rainha Velha.


O objetivo deste trabalho será analisar o perfil de alguns personagens que compõem a estrutura da sociedade lusitana do Antigo Regime e que são de maior importância como: o Fidalgo, o Onzeneiro, o Parvo, o Sapateiro, o Frade, o Judeu e os Quatro Cavaleiros de Cristo. Esses personagens, de maneira geral, representam elementos muito comuns da dinâmica social daquele tempo; e os personagens que não forem citados, não foram de maneira nenhuma ignorados, só não resolvi os colocar aqui pelo espaço que nos é limitado e porque, de uma forma ou de outra, os tipos sociais que eles caracterizam já estão representados nos outros personagens.


GIL VICENTE E O AUTO DA BARCA DO INFERNO: UMA IMAGEM DAS CAMADAS SOCIAIS PORTUGUESAS NO SÉCULO XVI.
Definido pelo próprio Gil Vicente como um “auto de moralidade”, o Auto da Barca do Inferno tem como cenário fixo duas embarcações, num porto imaginário para onde vão as almas no instante da morte. Cada barca possui um comandante - a do Paraíso, um Anjo; a do Inferno, um Diabo, que conta com um Companheiro. A ação da peça desenvolve-se a partir da chegada dos personagens, que um a um desfilarão por esse porto, procurando encontrar a passagem para a vida eterna. Serão julgados pelo que fizeram em vida. O Diabo e o Anjo acusam, mas só o Anjo pode absolver. Em seguida, são encaminhados a uma das barcas.


Toda a composição cênica presente na obra – rio, porto barcas, Anjo, Diabo – concretiza o espaço intermediário entre a vida terrena e a vida eterna, ou seja, representa uma “moldura simbólica” do auto que irá caracteriza-lo como um teatro de costumes e de religiosidade alegórica. Desta forma, temos em o Auto da Barca do Inferno um teatro poético, com versos redondilhos, rimas, símbolos, metáforas e agudezas. Os personagens desta obra caracterizam tipos sociais – nobreza, clero e o povo.


Antes de entrarmos especificamente na análise desses tipos sociais presentes na obra, vamos verificar algumas características sugeridas por Vitorino Magalhães Godinho em sua obra Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, que, com certeza, irão estabelecer diretas relações com o modo proposto por Gil Vicente de ver a sociedade.


Na sociedade do Antigo Regime, podemos notar uma clara distinção em estados ou ordens – clero, nobreza e o braço popular. Trata-se de uma divisão jurídica por um lado e por outro uma divisão de valores e de comportamentos estereotipados. Cada qual, nesta sociedade, ocupa uma posição numa hierarquia rígida, se possuí ou não títulos, que lhes dão direito a certas formas de tratamento.

Existiam inúmeras leis em Portugal que versavam exclusivamente sobre a maneira que deviam ser usados os pronomes de tratamento ao dirigir-se a uma outra pessoa e sobre os modos de se vestir, segundo a sua origem e distinção social.

As pessoas desta sociedade se situam em categorias que se distinguem pelo nome, pela forma de tratamento, pelos trajes que lhes são permitidos usar e pelas penas que podem estar sujeitas. Vitorino Magalhães Godinho define a sociedade portuguesa do Antigo Regime através de duas divisões: a do Peão e a da pessoa de mor qualidade[1] e estes valores se farão presentes não só na obra de Gil Vicente, mas, também, na obra de diversos autores contemporâneos dele. Estará também assimilada pela mentalidade coletiva daquele tempo. Desrespeitar estes costumes na época caracterizaria crimes de contravenção que sujeitaria o “criminoso” ao degredo, pagamento de “fiança” ou a penas corporais, dependendo de sua posição. Perante toda a esta ordem social e jurídica, figuram certas disposições de origem rácica, ou seja, que trata de Mouros e Judeus que foram expulsos ou sujeitos a conversões forçadas durante o reinado de D. Manuel.


A primeira figura do Auto que iremos analisar será a do Fidalgo, prepotente que veste-se com apuro e vem acompanhado de um pajem que carrega uma cadeira de encosto alto. Os personagens, na maioria das vezes, trazem consigo referências do que foram quando vivos.

No caso do Fidalgo, a cadeira de encosto, o pajem e a rica indumentária formam um conjunto de símbolos indicador de sua alta posição social. Mas, nesse porto, a noção de hierarquia social desapareceu. Ali, o julgamento é moral. O Diabo, que é sempre o primeiro a receber as almas, convida Dom Anrique, o Fidalgo, a embarcar. Porém, ao saber o destino do batel, o nobre zomba do convite.

Mesmo depois da morte, o Fidalgo demonstra a arrogância prepotente típica da classe a que pertence. Além do mais, julga-se merecedor da recompensa divina, pois deixou na vida quem rezasse por ele. Embora típico o comportamento arrogante, o Fidalgo ainda apresenta certa humanidade; quando rejeitado pelo Anjo, se mostra arrependido por sua existência vazia: “folgava ser adorado; / confiei em meu estado / e nom vi que me perdia”.


Para com o Fidalgo, o Diabo mostrará uma falsa e irônica reverência, tratando-o por “vossa doçura” e dispondo-se sarcasticamente a desembarcá-lo na chegada ao cais, isto é, o inferno.

O Diabo escarnece-o, trata-o por tu, rebaixa-o até no seu orgulho próprio. E é em parte devido ao fato de ele ter sido um poderoso que mais agora é rebaixado, por se ter mostrado tirano do ponto de vista social e um enganado na sua vida particular[2]. A sentença deste personagem é a condenação da frivolidade, da soberba e da tirania.


A seguir, temos em cena o Onzeneiro ambicioso. É o agiota que traz consigo uma enorme bolsa vazia, em que guardava o dinheiro que roubava das pessoas quando vivo. O Diabo o cumprimenta esfuziante e o trata por “meu parente”. O Onzeneiro queixa-se por estar sem dinheiro e o Diabo lhe indica que deve entrar na barca infernal. Mas o agiota, ao saber do destino de sua embarcação, recusa-se a entrar, indo em direção ao batel da Glória. O Anjo o despede, acusando-o pelo exercício da usura: “Ó onzena, como és feia / e filha da maldição”. A sentença do Onzeneiro será a condenação da usura[3], da ganância e da avareza que no final se lamentará: “Oh triste! Quem me cegou!”.


Depois do triste lamentar do Onzeneiro, aparece a figura do Parvo, ou melhor, do ingênuo Joane, que ao chegar no cais é por instantes iludido pelo Diabo, que o quer embarcar. Porém, quando é informado do rumo do batel, Joane desata um grosso e engraçado xingamento ao Diabo, recheado de pragas e palavrões.

Abundam em sua linguagem imagens do tipo escatológico, que representa a forma como ocorreu seu falecimento – de “caga merdeira”, fruto das péssimas condições materiais deste estamento – e muitos xingamentos ao Diabo como “cornudo”, “beiçudo” e “neto de cagarrinhosa”.


Ao Anjo apresenta-se como não sendo ninguém, e é a sua simplicidade de espírito e irresponsabilidade que lhe permitirão a entrada na embarcação que os conduzirá ao Paraíso:

ANJO
Porque em todos teu fazeres,
Per malicia não erraste;
Tua simpreza tábaste
Pêra gozar dos prazeres.


Após o Parvo, figura o Sapateiro ladrão chamado João Antão que entra em cena carregado de pesadas formas, instrumentos de trabalho que o identificam. O Diabo o cumprimenta com muita ironia o chamando de “sancto sapateiro honrado” e que condena para o inferno, uma vez que, esteve presente a todas as cerimônias e ritos religiosos, porém, roubava nas praças desonestamente.



SAPATEIRO
Quantas missas eu ouvi, não me hão-de elas prestar?
DIABO
Ouvir missa, então roubar – é caminho para aqui.

A sentença do Sapateiro é a condenação da má fé no comércio e da hipocrisia religiosa.
Todavia, após a condenação do sapateiro, entra em cena a figura do Frade namorador, este personagem traz consigo a namorada Florença. Suas roupas são ambíguas. Além das vestes sacerdotais, o Frade apresenta-se com instrumentos próprios da prática de esgrima.

Além de mostrar-se hábil nesse esporte, ainda se revela conhecedor da arte da dança e do canto populares. O Diabo, muito alegre, recebe o casal com graça e convida-o a embarcar. O Frade espanta-se. Como ele, um religioso, poderá ser condenado? Sempre ao lado de sua namorada, o padre recorre ao Anjo. Mas este, num silêncio reprovador, nem sequer lhe esboça uma palavra. Muito apegado aos prazeres do mundo, o Frade demonstra em cena uma preocupação verdadeira com a namorada Florença. Essa postura mais humana o aproxima, como personagem, do Fidalgo. A sentença do Frade, neste caso, será a condenação do seu falso moralismo religioso.


O clero constitui o primeiro estado do Reino, possui uma organização própria, com sua hierarquia interna, goza de foro privativo, rege-se por suas próprias leis (direito canônico) e todo o resto da sociedade lhes é “subordinado[4]”.

Daí a importância, para Gil Vicente, de sinalizar a decadência da sociedade essencialmente baseada em valores cristãos, que está sendo corrompida em seus próprios alicerces.


A seguir temos a presença do Judeu, que chega ao batel infernal carregando um bode às costas. O bode é insígnia do judaísmo. O Diabo, que até então estava sedento de almas, atende com má vontade o Judeu. Este, por sua vez, ao conhecer o rumo da nau, quer embarcar. Mas é rejeitado pelo Diabo sob o pretexto de não aceitar o bode em sua barca. O Judeu tenta suborná-lo, pois não pode se separar do animal.

Pede, sem resultado, a intervenção do Fidalgo, com quem tinha negócios. O Diabo sugere ao Judeu a outra barca, mas o Parvo o impede de se aproximar do Anjo, recriminado-o por haver desrespeitado a religião católica. Por instantes, o personagem é condenado a vagar sem destino pelo cais das almas. No final, o Diabo permite que o Judeu e o bode sigam numa embarcação a reboque da sua.

A partir da leitura que fizemos da cena do Judeu[5] e da análise que fez Maria Leonor García da Cruz em seu Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos, podemos depreender alguns aspectos doutrinários da Igreja Católica em que Gil Vicente acredita e abre-se um grande leque de possibilidades numa análise específica no campo de uma história das mentalidades.

Esta é uma época de grande contestação antijudaica e em que o poder real tem um papel ativo na conversão forçada dos judeus portugueses, sob ameaça de expulsão em 1496 e sujeitos a reações violentas e sangrentas que persistirão durante todo o decorrer do século XVI. Até que ponto, na sua obra, Gil Vicente reflete ou emite uma opinião sobre a legitimidade dessa conversão compulsiva, tema que ao longo dos anos iria gerar discussão e controvérsia; como encara o cristão-novo ou judeu converso na construção das personagens que coloca em cena, que características atribui ao judeu nas suas peças, são questões que, motivam um esforço de resposta e contribuem para o enriquecimento desta problemática e compreensão do estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal.


Por último, entram em cena os Quatro Cavaleiros de Cristo que trazem suas armas e uma cruz. Estes cavaleiros morreram combatendo os mouros durante as Cruzadas. Ao passar pelo batel dos danados, são interpelados pelo Diabo, que os requer: “Entrai cá! Que cousa é essa? / Eu não posso entender isto!” Ao que responde um Cavaleiro: “Quem morre por Jesus Cristo / não vai em tal barca como essa!”. Desta forma, os Quatro Cavaleiros são recebidos pelo Anjo em seu batel.


Numa sociedade cristã em expansão[6], em qualquer parte do mundo, o cristão combate o “muçulmano”, as guerras cada vez mais representam os meios para se alicerçarem empreendimentos políticos, econômicos e militares. No entanto, é necessário um forte aparelho político-ideológico para tal, e é na luta contra o infiel e através da evangelização que haverá, na ótica de Gil Vicente, uma justificação ética. A valentia dos feitos de guerra ganha em Gil Vicente um conteúdo especial.

Daí a condenação da fanfarronice e da covardia, tanto presentes nas falas do Frade como do Judeu, ‘tradicionalmente’ apelidado de covarde. O contraste que estas personagens representam em relação ao cavaleiro é, por isso, acentuado através de suas representações. Gil Vicente procura recuperar a imagem do cavaleiro que arrisca sua vida em feitos de guerra, combate para ganhar fama e glória, e morre para elevar o nome de Deus. Ora, onde poderia melhor um nobre português demonstrar a sua coragem e habilidade senão lutando contra os mouros no Norte da África?

A sentença dos Quatro Cavaleiros é a glorificação do ideal das Cruzadas e do espírito do Cristianismo puro.



Sendo assim, ou seja, com a salvação dos Quatro Cavaleiros, Gil Vicente encerra sua peça. A justiça e os seus negros servidores, a cobiça e a usura, a tirania dos nobres, a imoralidade de setores do clero são alguns dos elementos que Gil Vicente pretende apontar e que levam a sociedade do seu tempo à decadência. Porém, daqueles que foram salvos, o dramaturgo português tenta ressaltar a importância da humildade e simplicidade e enaltecer o espírito cavaleiro das Cruzadas. Espero que este trabalho tenha servido para uma breve ilustração dos tipos sociais existentes na sociedade portuguesa do século XVI.
BIBLIOGRAFIA
Gil Vicente. Auto da Barca do Inferno. Ed. Klick. São Paulo, 1997.

Vitorino Magalhães Godinho. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Ed. Arcádia, Lisboa: 1971.

Charles R. Boxer – O Império Marítimo Português 1415-1825. Lisboa: 1992

Luiz Felipe Alencastro – O Trato dos Viventes. Cia das Letras, 2000

Eduardo d´Oliveira França - O Poder Real em Portugal e as origens do Absolutismo, FFLCH, 1946.

Maria Leonor Garcia da Cruz. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos. Gradiva, Lisboa: 1990.

NOTAS

[1] Vitorino Magalhães Godinho. Estutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Ed. Arcádia, Lisboa: 1971.

[2] Maria Leonor Garcia da Cruz. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos. Gradiva, Lisboa: 1990. p. 126.


[3] Nesta época, os povos se queixam da ação dos usurários, pedindo ao rei que tire devassa “cada um ano sobre os onzeneiros porque eles são mui gram dano ao povo e destruição de suas almas e fazendas”, alegando, desta forma, a sua prática amoral e a exploração desenfreada a que submetem os bens alheios. Ver “Capítulos de Cortes e Leis que se sobre alguns deles fezeram “(BNL, Res. 65-A), caps XVII e XVIII in Maria Leonor Garcia da Cruz. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos p. 121


[4] Vitorino Magalhães Godinho. Estutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Ed. Arcádia, Lisboa: 1971. p. 85-88.


[5] A passagem do Judeu, de difícil interpretação, indica em principio a marca do preconceito religioso. Gil Vicente, ao longo de sua obra, mostrou-se dividido frente aos judeus. Ora os defende, ora os ataca. Sabe-se, contudo, que o dramaturgo português defendeu publicamente os cristãos-novos, num período de franca perseguição religiosa.

[6] Muitos privilégios e honras foram concedidos à Ordem de Cristo pela sociedade portuguesa em geral, a começar pelos eclesiásticos. Em 1455-6, a Ordem de Cristo obtivera jurisdição espiritual sobre as “terras, ilhas e lugares” até então descobertos ou a serem descobertos pelos portugueses.
Charles R. Boxer – O Império Marítimo Português 1415-1825. Lisboa: 1992. p.243

Um comentário:

Anônimo disse...

O meu professor de literatira contou um pouco diferente mais to louca pra assistir o auto da barca do inferno.