terça-feira, 16 de dezembro de 2008
A Revolta da Vacina e a cidade do arrivismo
Nicolau Sevcenko ilustrando o panorama conjuntural da inserção compulsória do Brasil na Belle Époque em sua obra Literatura como Missão, ressalta a importância das crises políticas de 1889, 1891, 1893 e 1897 – causando diversas deportações, exílios, prisões-, que inicialmente tinha atingido as elites ligadas ao Império e posteriormente passou a atingir os republicanos mais preocupados com os anseios populares. No plano econômico, com a política do Encilhamento encabeçada por Rui Barbosa e a conseqüente queima de “fortunas seculares”, as práticas especulativas e o jogo de títulos e ações em torno das graves oscilações cambiais promoveram verdadeira “fome do ouro, sede da riqueza, do luxo, da posse etc”. Iniciou-se assim, um novo processo de seleção política no Brasil, onde esses Homens Novos passaram a ocupar cargos rendosos e de mando dados pelo governo através de “nomeações”, “concessões”, “privilégios” e “favores”. Institui-se desta forma, o modelo do burguês argentário; e esta transformação se dará de forma tão avassaladora que fará aderir ao modelo burguês plutocrata até os antigos senhores do Império.
A cidade do Rio de Janeiro no florescer do século XX, desempenhava um papel privilegiado na intermediação dos recursos da economia cafeeira. Centro político e administrativo do país apresentava uma enorme quantidade de capitais acumulados principalmente nos setores de comércio e finanças, que indubitavelmente, fez também se desenvolver o setor industrial. Abrigava a Sede do Banco do Brasil, a maior Bolsa de Valores e possuía a maior parte das grandes casas bancárias nacionais e internacionais. Apresentava o mais amplo mercado nacional de consumo e de mão de obra, sendo o porto do Rio de Janeiro na virada do século, o 15º maior porto em volume de comércio. Essas transformações nos modos de vida proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico e industrial aliados à “democratização do crédito” introduziu uma remodelação nos hábitos sociais e cuidados pessoais causando uma verdadeira febre de consumo da novidade; a enorme quantidade de lojas na rua do Ouvidor era o mais nítido exemplo do que significava acompanhar o progresso: alinhar-se com os padrões e os ritmos da economia européia, ou seja, ser chic ou smart.
Como verificou José Murilo de Carvalho em Os Bestializados, Rodrigues Alves assumiu o governo vendo Campos Sales sair do Rio sob imensa vaia. O governo de Campos Sales tinha sido de intensa recessão econômica produzida por uma política de combate à inflação, pela contenção drástica dos gastos do governo e pelo aumento de impostos. De fato, Campos Sales conseguiu reajustar a economia do país, porém, o fez à custa da insatisfação geral que ia dos operários aos cafeicultores, englobando banqueiros e industriais. Rodrigues Alves, sem alterar substancialmente a política econômica vigente, decidiu realizar um intenso programa de obras públicas, financiado por recursos externos, visando a modernização do Brasil tendo como ponto de partida a capital Rio de Janeiro. Para isto, iniciou as obras de saneamento e de reforma urbana do Rio de Janeiro aliada a lei de vacinação obrigatória contra a varíola, e assim, inicia-se um verdadeiro drama humano das populações mais humildes cariocas. Brigadas sanitárias compostas por um chefe, cinco guardas mata-mosquitos e operários de limpeza pública, percorriam ruas visitando casas, desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes; principalmente nas áreas mais pobres e de maior densidade demográfica, e na maioria das vezes essas visitas ocorriam com a presença da polícia que utilizava a força para prevenir resistências.
Segundo Nicolau Sevcenko em A Revolta da Vacina, as condições de vida na cidade do Rio de Janeiro vinham se deteriorando inexoravelmente. O pequeno espaço urbano, entremeado de morros e áreas pantanosas, passava por um processo vertiginoso de metropolização, com a população crescendo pasmosamente de 522.651 habitantes em 1890 para 1.157.873 em 1920. A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos antigos casarões coloniais e imperiais que ocupavam a região central da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros cubículos que eram alugados para famílias inteiras dando origem aos cortiços. A insalubridade da capital, foco endêmico da varíola, tuberculose, malária, febre tifóide, lepra e febre amarela aliado ao não planejamento urbano da cidade era um problema muito conhecido desde os áureos tempos do Segundo Reinado.
Este processo de reforma urbana foi saudado entusiasmadamente pela imprensa conservadora, que a denominou “a Regeneração”. Essa era a voz dos beneficiários do replanejamento, que agora iriam possuir amplos espaço públicos controlados e elegantes, onde antes não podiam circular senão com desconforto e timidez. Amplos espaços de convívio e sociabilidade burguesa no melhor do estilo da Belle Époque, que faria como vítimas toda uma multidão de humildes que constituíam a massa trabalhadora, desempregados, subempregados e desclassificados. A ação do governo não atentou somente contra os alojamentos dessas pessoas; como salientou Nicolau Sevcenko, a imposição destas ações influenciou em “suas roupas, seus pertences pessoais, sua família, suas relações vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, suas formas de subsistência e de sobrevivência, sua cultura enfim, tudo é atingido pela nova disciplina espacial, física, social, ética e cultural pelo gesto reformador”. Gestos estes, oficiais, autoritários e inelutáveis, que se fazia, ao abrigo das leis de exceção e bloqueavam quaisquer direitos ou garantias das pessoas atingidas.
A intenção deste breve trabalho, não é identificar o jogo político e a trama que deflagrou a Revolta da Vacina, mas sim, tentar apontar e entender como uma política de tamanha proporção se volta contra quase 80% da população do Rio de Janeiro que não tinha direito à participação política através dos mecanismos eleitorais. Sendo que, embora as propostas de Rodrigues Alves tendessem para um motivo modernizador do país, esta modernização realmente só se efetivaria para uma minoria alienada ao novo ritmo e estilo de vida cosmopolita da Belle Époque.
A ação da regeneração provocou rebuliço na cidade inteira e perturbou a vida de milhares de pessoas, em especial os proprietários das casas desapropriadas para demolição, os proprietários de casas de cômodos e cortiços anti-higiênicos, que eram obrigados à demoli-los ou reforma-los; e os inquilinos que deveriam receber os agentes de saúde e muitas vezes ficavam sem lar quando suas moradias eram condenadas à demolição. Como citou José Murilo de Carvalho no capítulo Cidadãos Ativos: A Revolta da Vacina, o atestado de vacina era exigido para praticamente tudo: matrícula em escolas, emprego público, emprego doméstico, emprego nas fábricas, hospedagem em hotéis e casas de cômodos, viagem, casamento, voto etc. Isto nos dá uma idéia da dimensão com que essas medidas afetavam o cotidiano das pessoas.
As conseqüências para essa enorme massa popular de trabalhadores, subempregados, desempregados e vadios compulsórios, segundo Nicolau, não se limitava às multas para os recalcitrantes, essas populações foram sendo empurradas para o alto dos morros e para os subúrbios ao longo das estradas de ferro e ao redor das estações de trem. O centro, por sua vez, tornou-se o foco de toda agitação e exibicionismo da burguesia arrivista: “seu pregão, sua vitrine, seu palco“. Separou-se assim o ócio do trabalho, porque o primeiro já não toleraria a convivência com o segundo, ao contrário do que fora a tônica da sociedade do Império: “O mundo do trabalho torna-se assim invisível para a sociedade burguesa”, trata-se da estratégia do ocultamento do universo do trabalho.
Desta forma temos que, assim como que a burguesia argentaria carioca não desejava ver o trabalho , a mesma não suportava ter a visão da doença, da rebeldia, da loucura, da velhice, da miséria ou da morte, estas, são todas excluídas para os sanatórios, prisões, hospitais, asilos, albergues e necrotérios. A campanha de vacinação, a violenta repressão e de uma forma mais ampla, o processo de Regeneração, visava implantar uma nova sociedade no Rio de Janeiro; e a elite dirigente viu deste modo uma forma de redimir o país de seu atraso, surge assim a conclusão de que o Brasil é um “imenso hospital” sugerindo a divisão da sociedade entre sadios e sãos: cabendo aos primeiros, como decorrência natural, a salva-guarda dos enfermos.
BIBLIOGRAFIA:
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. SP, Brasiliense, 1983; p. 11-134.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. SP, Brasiliense, 1984; p. 13-83.
CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. SP, Cia. das Letras, 1990; p. 9-163
domingo, 13 de julho de 2008
A ascensão de Mussolini e do Fascismo italiano
Antes de qualquer análise e ou conceituação acerca do fascismo italiano, deve-se ter em conta como premissa, a sua problemática histórica. É possível notarmos que nas duas últimas décadas e com o conseqüente avanço da historiografia relativa ao período, a imagem negativa do fascismo proposta pelas interpretações tradicionais alterou-se. Para as interpretações anteriores, o fascismo teria sido um movimento sem autonomia, originalidade e sem ideologia; sendo assim, a experiência histórica dos italianos – como também dos alemães – fora vista como uma doença moral, anti-humanitária ou sinônimo de crueldade para com seus nacionais e outros povos. Outras caracterizações de caráter político mais visível, colocam o fascismo como um instrumento terrorista contra o proletariado nas mãos do capitalismo reacionário, afirmando assim, um movimento plenamente negativo dentro da história e ausente de “características” como o liberalismo, a democracia, o socialismo e o comunismo. Já as novas interpretações, apresentam uma nova imagem do fascismo que é apresentado como um fenômeno mais complexo, com uma originalidade própria situada na realidade das políticas de massa e do autoritarismo moderno.
Segundo Emílio Gentile Renzo de Felice, o fascismo foi um fenômeno surgido, como outros movimentos na história contemporânea, dos conflitos inerentes à moderna sociedade de massa e as transformações do Estado. No entanto, a sua formação não fora um movimento necessário e inevitável, tampouco a resultante ocasional de situações ocasionais. É demasiadamente simplista julgar que o fascismo enquanto suas formas peculiares – partido e regime – foram produtos equívocos dos interesses da burguesia reacionária para enfrentar a cristalização do movimento operário ou que movimentos desta natureza tenham surgido somente devido à ação e personalidade de protagonistas como Benito Mussolini e Adolf Hitler. Considerar somente estas características nos levam a crer que tanto o fascismo como o nacional-socialismo foram simplesmente “acidentes históricos” ou formas de reação capitalista contra os perigos de uma revolução proletária internacional. Além do mais que, a realidade do fascismo não fora homogênea e unitária, bem como seu devir histórico é repleto de contradições e ambigüidades, que se apresenta, superficialmente, como uma sucessão de posturas e de comportamentos aparentemente desconectados de ideologia, de organização e prática.
O movimento fascista foi dotado de uma intuição própria relativa a moderna política de massa, fundadas na consciência do papel que o “mito” e a “organização” desempenham nos movimentos coletivos da sociedade moderna. No curso de sua formação, seja como “partido” ou como “regime”, o fascismo desenvolveu a sua intuição incorporando elementos que pertenciam àquela realidade histórica do período anterior a Primeira Grande Guerra aliadas às crises generalizadas do período posterior: em que eram enormes o déficit estatal, a inflação e a crise na agricultura; que a partir de 1921 se tornaria ainda mais evidente a crise econômica com a situação de paralisia dos investimentos e da indústria.
O objetivo deste trabalho é mostrar como se deu a formação do movimento fascista e a sua consolidação como “regime” tendo principalmente como objeto a trajetória “contraditória” e “ambígua” do seu próprio líder, ou seja, “Il Duce” Benito Mussolini que sem duvida se trata de um personagem de extrema importância na história recente da Itália que até hoje provoca paixões, sentimentos, ressentimentos,ódios, rancores e polêmicas na consciência de milhões de italianos. Benito Mussolini é um dos poucos personagens de nossa contemporaneidade que é visto por biógrafos, críticos e historiadores, dotado de uma personalidade tão complexa, contraditória, alternante, intencionalmente mascarada e instintivamente simuladora que o torna tão atraente e repulsivo. Ao longo de toda a sua aventura política (que deu aos italianos tantas ilusões e desilusões), podemos constatar que sem duvida, sua personalidade foi um objeto de grande fascinação e que o mito da sua “revolução” que nunca se realizou, se manteve e sobreviveu enquanto houvesse quem lhes oferecesse sua inteligência (como apoio) e seus corpos (no esforço de guerra e de manutenção do estado fascista).
O duce do fascismo italiano iniciou sua carreira política no Partido Socialista Italiano (PSI) em 1900. Lecionou alguns anos na Suíça até meados de 1904 e foi funcionário do partido em Trento (na época território austríaco). Mussolini fundou em 1909 a revista Lotta di Classe, antes de se tornar chefe de redação do Avanti!, entre 1912 e 1914, órgão de propaganda do Partido Socialista. Foi também o porta-voz da ala esquerdista do partido. Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, em que defendeu a participação da Itália no conflito com a Áustria, Mussolini afastou-se do PSI e incorporou-se ao exército italiano como bersaglieri no confronto armado. Em 1914, fundou o diário Popolo d'Italia, que ao invés de ser destinado somente à propagação da ideologia socialista, propôs a intervenção italiana contra os Impérios Centrais – idéias contrárias às da direção do partido.Mais tarde, faria desse jornal o órgão oficial do fascismo, o que causou sua expulsão do PSI. Depois de sua participação na Primeira Guerra Mundial, constituiu em Milão o primeiro Fasci di combattimento (Feixes de combate), núcleo do futuro movimento fascista. O seu sinal distintivo era o "fasces" do Império Romano (símbolo do poder dos cônsules da Antiguidade).
Melhor do que qualquer opinião ou juízo póstumo levantado por historiadores e biógrafos de Mussolini é o inquérito policial encontrado por Renzo de Felice que retrata autenticamente a personalidade e a compreensão dos acontecimentos históricos que presenciou Mussolini. Neste inquérito de 04 de junho de 1919, escrito por um inspetor geral chamado G. Gasti, informa sobre um “rebelde útil à pátria” que numa assembléia dos Fasci di Combattimento em S. Sepolcro - Milão no dia 23 de março de 1919, viu então Mussolini propor a discussão de três postulados referentes respectivamente ao problema militar, eclesiástico-religioso e trabalhista. Sobre o problema militar, sustentou que por hora esse assunto não deveria ser analisado dadas às condições que o mundo saia após a primeira grande guerra, no entanto, afirmava um dos grandes preceitos da escola republicana: a nação armada. Sobre o problema eclesiástico, sugeriu que as igrejas deveriam ser consideradas associações privadas sujeitas às leis comuns, a separação da Igreja e do Estado com a abolição do privilégio estatutário e o confisco de bens eclesiásticos. Sobre a questão trabalhista afirmou que era necessário proteger o proletariado da tirania dos poucos dirigentes (da Confederação do Trabalho) que atuavam para atingir seus próprios fins sem o discernimento da situação e destino das classes trabalhadoras.
Este documento ainda faz um retrato completo do perfil – intelectual, psicológico e moral – do “sujeito”. “De forte constituição física(...), é um emotivo e impulsivo, características que lhe fazem sugestivo e persuasivo em seus discursos(...); Pré-disposto a fazer rápidas amizades, é capaz de sacrifícios por seus amigos e é demasiadamente tenaz em suas inimizades e ódios(...)”. “É corajoso e ambicioso, tem muitas capacidades de organização e é capaz de tomar rápidas decisões, sempre o primeiro em todas as empreitadas que exigem coragem e audácia, de início um apóstolo sincero e apaixonado da neutralidade vigilante armada da Itália, e logo depois da guerra”. Segundo o relatório de Gasti, não é possível detectar em que medida Mussolini abandonou suas convicções socialistas, das quais, nunca fez manifestações nem abjurações públicas. Das notícias que relataram biógrafos, estudiosos e pessoas que conviveram com Mussolini (antigos alunos, professores, amigos e companheiros dos tempos como bersaglieri) antes de sua ascensão como supremo chefe do fascismo italiano, nos deixam um retrato que nos permite fazer um paralelo de como será o futuro político. Sua personalidade era marcada fortemente pela improvisação, versatilidade, oportunismo, destreza, percepção dos momentos e indubitável conhecimento dos homens e das massas. Vindo de família pobre e com uma dura infância, na sua juventude interessou-se por leituras “subversivas” (de certa erudição cultural para o seu tempo e ambiente) lendo títulos que iam de Os Miseráveis de Victor Hugo até O Capital de Karl Marx. Tornou-se um jovem insolente, rebelde, introvertido e agressivo que exerceu atividades de baixo escalão como carpinteiro, vendedor de drogarias e passou grande parte do tempo desempregado a qual realizava paralelamente uma atividade política junto aos pequenos grupos socialistas vagando de canto em canto e muitas vezes expulso por ser tido como “indesejável”.
Tornou-se, assim, a partir de 1911, o que pode ser chamado de um “socialista revolucionário” intransigente e extremista, orador eficaz e polêmico, político agudo que com extrema habilidade exerceu a função de dirigente político do socialismo na Itália. A sua primeira façanha revolucionária foi a guerra da Líbia, que no verão de 1911 começou a desenhar-se após a invasão do Marrocos pela França, em que defendeu a intervenção italiana na África que era bem vista pelo governo de Giolitti e por razões práticas pelos grupos financeiros e industriais representados pelo Banco de Roma. Neste período, ou seja, do que deveria ser a primeira “guerra relâmpago” que mostrou-se desastrosa e no calor dos movimentos insurrecionais como de Faenza que ele liderou e foi preso, Mussolini escreveu sua autobiografia Minha Vida, que são cerca de oitenta páginas desconcertantes em que confessa o seu passado, suas concepções filosóficas e os seus sentimentos de agitador revolucionário.
Em 1912, quando volta a liberdade, é visto como um mártir e se torna muito popular – concretamente, é neste momento que inicia sua carreira política dentro do PSI. Começa a inspirar-se em textos como Teoria das Elites de Louis Auguste Blanqui, obras Friedrich Nietzsche e George Sorel (teórico das capacidades da violência e do sindicalismo forte como instrumentos únicos da rebelião proletária). Em meados de 1913, depois de haver anunciado que o PSI deveria rechaçar as “concessões democráticas”, típica dos partidos de esquerda mas não revolucionários, Mussolini começou a sustentar idéias de que o proletariado deveria responder aos ataques com greves e revoltas gerais. Sendo assim, para defender a sua convicção de que se deveria passar da neutralidade absoluta para a neutralidade ativa e operante, irá entrar em cena suas polêmicas no jornal Popolo d'Italia e a sua conseqüente visibilidade frente ás classes dirigentes. Entre a inércia e a ação, preferiu a ação, sendo assim, isto lhe custou romper com o partido e se juntar com os nacionalistas; decisão esta que talvez tenha sido visto por ele como um atalho para o caminho da revolução do qual acreditava. Em resumo, o cisma de Mussolini para com o partido, submeteu-o aos intervencionistas de alto nível como o próprio rei, os industriais, os latifundiários, os nacionalistas, as classes conservadoras e um modesto apoio, porém turbulento, dos proletários e jovens de esquerda seus simpatizantes. Desta forma, após a grande crise causada pela deflagração da guerra, aumentaram suas bases de apoio e suas subvenções; e Mussolini passou a ser visto como um instrumento muito útil para o futuro aglutinando-o cada vez mais às classes capitalistas, das forças armadas, veteranos de guerra e do Estado “amante da ordem” dando ao fascismo ajudas e cumplicidades de todas as espécies. Centenas de brigadas (squadres), formados por oficiais afastados, ex-combatentes, membros de batalhões de elites, voluntários e estudantes começaram a dar forma aos grupos de ação (esquadrismo) recebendo subvenções patrióticas dos ramos destacados acima, modelando o caráter para-militar do que seria o fasci antes que Mussolini inventasse o termo.
Mussolini, assim cumpriu seu papel (dadas às suas qualidades) dando uma justificação ideal e unitária para este movimento colocando-se como líder no ano de 1919, o ano da fundação do fascismo italiano. A questão crucial que se coloca frente à problemática da formação do fascismo italiano, é de que maneira a “ambigüidade” e “contraditoriedade” da personalidade de Mussolini contribuiu neste processo de alteração dos caminhos e causas; ou melhor, por quê Mussolini em vez de apoiar as revoltas proletárias e do campesinato, preferiu colocar-se à frente ex-combatentes desempregados, aventureiros e matadores de profissão subvencionado pelas classes dirigentes? Talvez uma possível resposta seja de que o fator decisivo que tenha influído em sua “eleição” no pós-guerra sejam os compromissos financeiros e de todo o gênero, que o ligaram indissoluvelmente aos círculos capitalistas; e de que após a sua saída do partido (devido a sua incompatibilidade de idéias como a intervenção na guerra) em um plano psicológico, continuou-se, por outro lado, uma forte campanha contra ele.
Também não devemos ignorar o fato de que, impulsionado pelas circunstancias mencionadas, Mussolini tivera a percepção de que o objetivo final de sua revolução social seria mais facilmente alcançada, caso em vez de incitar-se as grandes agitações das massas, ele se apoiasse na violência institucionalizada e subvencionada dos squadristi pelas classes conservadoras, dirigentes, reacionárias e do Estado constitucional (como levantou a hipótese, o inspetor Gasti). Pretendi, desta forma, elucidar algumas questões concernentes sobre a ascensão do fascismo tendo-se como eixo principal a personalidade e a vida de Mussolini nos momentos cruciais que lhe levaram ao rompimento com as idéias de caráter socialista. Podemos perceber, que o movimento fascista enquanto ideologia não pode ser facilmente caracterizado, e que o programa revolucionário fascista não se efetivou solidamente, uma vez que, há uma relativa alternância e falta de regularidade dos rumos da condução da política fascista paralela às circunstancias. Todavia, é indubitável frente à multiplicidade de fatores que conduziram Mussolini ao poder, a sugestão de Renzo de Felice acerca do fascismo que: “satisfazia as suas demandas de re-equilibrio com a ênfase nos conceitos de ordem, disciplina, hierarquia e a desmobilização das classes inferiores; por outro lado, transferia as frustrações de um nível individual ou de classe para um nível nacional com reivindicações territoriais, sonhos de poder imperial e assim por diante. Tudo isto explica a formação e o desenvolvimento de um movimento de massa com um potencial altamente revolucionário e fortemente autoritário”.
Bibliografia:
RENZO de FELICE, Emilio Gentile. A Itália de Mussolini e a Origem do Fascismo, São Paulo: Ícone, 1988.
ZANGRANDI, Ruggero. Los Hombres, la Historia Universal a través de sus protagonistas: Mussolini, Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1976.
TRENTO, Ângelo. Fascismo Italiano, São Paulo: Ática, 1986.
PARIS, Robert. As Origens do Fascismo, Lisboa: Dom Quixote, 1970.
sexta-feira, 6 de junho de 2008
Análise iconográfica da obra Pretos de Ganho de Henri Chamberlain.
Views and Costumes of the city and neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil, from drawings taken by lieutenant Chamberlain, Royal artillery, during the years 1819 and 1820, with descriptive explanations.
Há uma relativa escassez de noticias sobre o Brasil, vindo de fontes estrangeiras, em períodos anteriores a vinda da família real. Devido às políticas de controle de contrabando de diamantes, durante todo o século XVIII e início do XIX, os estrangeiros eram recebidos nos portos brasileiros com grande desconfiança e não podiam transitar livremente pelo território, muito menos penetrar no interior da colônia portuguesa. A abertura dos portos brasileiros ao comércio marítimo internacional imposta pelos ingleses à D. João VI, não tiveram somente as conseqüências conhecidas e exploradas largamente pela historiografia relativa à independência do Brasil, mas também, estas medidas facilitaram a entrada dos viajantes europeus dando origem ao aparecimento de livros de viagens sobre o Brasil em quantidade cada vez maiores. Dadas as “amistosas” relações entre Portugal e Inglaterra, é natural que os ingleses logo nos visitassem curiosos por tudo quanto se tratava desse lugar longínquo e pitoresco que representava o Brasil no imaginário europeu.
Entre os livros de viagem sobre o Brasil que surgiram antes de nossa independência, nenhum fez tanto sucesso quanto o livro de Henry Chamberlain: “Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro”. Publicado em Londres, em 1820, portanto, anteriormente as publicações de Debret e Rugendas, o livro contém trinta e seis litografias coloridas[1], feitas segundo os desenhos do autor.
O autor de “Vistas e costumes do Rio de Janeiro” era o filho mais velho de Sir Henry Chamberlain, cônsul geral e encarregado de negócios de Sua Majestade Britânica no Rio de Janeiro, de 1815 a 1829. Representando os interesses ingleses no Brasil durante esses anos, Sir Henry adquiriu, tanto junto a D. João VI como D. Pedro I, um enorme prestígio; foi sem dúvida uma das personalidades de corpo diplomático mais importantes – tanto nas cortes portuguesas como brasileiras – no período em que aqui viveu. Filho de pai ilustre, o nosso pintor Henry Chamberlain, seguiu a carreira das armas e quando veio ao Brasil era tenente da Real Artilharia inglesa. Mais tarde esteve na Nova Zelândia, na Colônia do Cabo e nas Bermudas, levando a vida monótona de oficial das tropas coloniais. Faleceu nas Bermudas vitimado de febre amarela aos 48 anos. Dotado de um verdadeiro talento de pintor, não desenvolveu este dom, pois, no seu tempo não deveria ficar bem a um oficial do exército ter fama de pintor.
Todavia, era elegante desenhar e pintar displicentemente como amador, o que só favoreceria a fama de um oficial bem nascido. Embora a fama de artista não devesse ser ambicionada por um gentleman, ele publicou o seu livro de impressões de viagem às próprias custas e como convinha a um nobre amador: ou seja, uma edição de luxo e uma tiragem de poucos exemplares.
Chamberlain não pintou somente o que publicou, ele não se limitou a percorrer as ruas do Rio de Janeiro em busca de cenas pitorescas, desceu a costa e esteve em São Sebastião, Santos, São Paulo e Minas Gerais; pinturas essas nas mãos de alguns poucos colecionadores e que poderiam ter um imenso valor documental sobre o cotidiano nessas regiões do Brasil.
O tenente de artilharia que teve a oportunidade de vir a um país exótico como o Brasil, em vez de pegar a pena e escrever um livro narrando o que viu, preferiu pegar nos pincéis e pintar através de um espírito observador e honesto exatamente o que tinha diante dos olhos, porém, como não podia descrever tudo quanto queria sobre os estranhos costumes do Rio de Janeiro, redigiu, para cada gravura em “Vistas e Costumes do Rio de Janeiro”, um comentário explicando cada evento retratado. Chamberlain não teve outra pretensão, além de mostrar aos seus compatriotas como era bela a paisagem e como eram esquisitos os costumes do Rio nas vésperas da Independência.
Um dos aspectos que muito atraiu a curiosidade de Henry Chamberlain durante sua estadia no Rio de Janeiro foi a grande presença de negros escravos e suas formas peculiarmente urbanas de exploração do seu trabalho. Nas cidades, os escravos e escravas poderiam ser alugados[2] para a realização de atividades remuneradas, do qual, o produto adquirido deveria ser repassado ao proprietário do escravo e caso houvesse um excedente este ficaria com o escravo para seu próprio sustento e em alguns casos até para a compra da sua alforria. As mulheres escravas costumavam exercer este tipo de atividade[3] como quitandeiras vendendo doces, galinhas, frutas, verduras etc; ao passo que, os homens costumavam trabalhar em atividades que exerciam maior força bruta.
Portanto, como podemos ver na gravura, é reproduzida a forma com a qual são transportados as pipas de vinho, água e outros pesados objetos. Logo se vê a grande quantidade de negros que são empreendidos nesta tarefa como carregadores de aluguel que se encontram equipados com grossas e compridas varas, cordas e carretões baixos para arrastar as mercadorias de um local para outro. Segundo os comentários do autor, nessa região da rua Direita perto da Alfândega, encontravam-se grandes quantidades desses negros[4].
Chamberlain também descreve como funcionava o processo de carregamento dessas cargas pelos escravos, ressaltando que geralmente um escravo tinha o papel de chefe, ou capataz, como se costumava dizer. Quando todos os escravos estavam a postos, eles levantam devagar o tonel, e cada um colocando a mão no ombro do vizinho para o equilíbrio começavam a se mover; para manter a regularidade dos passos e para produzir uniformidade no esforço, o Capataz cantava algumas palavras africanas, ao final das quais todo o corpo se juntava ao coro, e assim cantando e marchando juntos, eles completavam o serviço. O capataz geralmente arrumava um jeito de ficar para trás e somente empurrava o peso para frente, poupando-se pelo esforço dos outros envolvidos. Os carregadores do Rio de Janeiro são, contudo, segundo a visão do pintor, ou não tão fortes ou não tão dispostos como os negros Gallegos de Lisboa, onde quatro escravos não tinham dificuldade de carregar um tonel de vinho, enquanto que, na figura são representados oito escravos para levantar o barril. Outros seis escravos aparecem puxando um carrinho que suporta um barril[5].
Ao longo de “Vistas e Costumes do Rio de Janeiro” podemos perceber fortemente a presença do negro e da escravidão segundo a perspectiva do pintor. É possível analisar através de suas gravuras como era a dinâmica da inserção do negro nessa conjuntura escravocrata urbana, retratando quais eram suas relações em um âmbito do cotidiano ou até mesmo nos quadros da família fluminense no início do século XIX. Diferentemente de outros artistas, a iconografia apresentada por Chamberlain não privilegia os panoramas da cidade e, sim, seus tipos sociais, daí sua importância no que se refere à iconografia da escravidão no Brasil, no século XIX.
ANEXO – REPRODUÇÂO DOS COMENTÁRIOS DO PINTOR SOBRE PRETOS DE GANHO.
Aqui vão reproduzidas as duas maneiras de transportar pipas de vinho e outros objetos pesados.
Na parte larga da rua Direita, perto da Alfândega, encontra-se grande número desses negros, empregados como carregadores de aluguel para transporte de cargas, munidos de grossas e compridas varas e de fortes cordas para carregar, ou com carretões baixos e toscos para arrastar as mercadorias de um lugar para outro.
Esses homens são, geralmente, talvez possa dizer-se invariavelmente, escravos que trabalham para os seus senhores, a quem entregam, todas as noites, de volta para casa, determinada importância, guardando para si apenas as sobras, si as houver; outras vezes, nos maus dias, repõem as diferenças do ganho.
Muitas famílias vivem exclusivamente do trabalho de escravos, acima descrito.
Quando o peso é demasiado para um só homem, a carga é levantada em uma vara e assim conduzida ao destino, por dois escravos. Para cargas ainda maiores são precisos quatro, seis ou mais, conforme o caso exigir. Em geral, um deles negocia por todos, assumindo o papel de chefe, ou capataz, como se usa dizer. Tudo acertado, erguem o peso vagarosamente, cada qual pondo a mão no ombro do vizinho, para apoiar-se, e só então começam a se locomover. Afim de manter a regularidade do passo, tão necessária para produzir uniformidade de esforço, o capataz canta algumas palavras africanas às quais todos respondem em coro. E assim, cantando e marchando juntos, executam o trabalho contratado.
Os carregadores negros do Rio, ou não são tão fortes ou não são tão dispostos a fazer força quanto os seus colegas, os galegos de Lisboa, onde quatro não tem dificuldade em carregar uma pipa de vinho, enquanto que dos primeiros, um grupo de oito não tentaria levantar tal peso.
O carretão, que desliza sobre quatro rodas pequenas e fortes, é um veículo dos mais difíceis de se manejar. Suas rodas são baixas e sólidas, fixadas nos próprios eixos, que também giram com elas; o estrado, colocado simplesmente sobre os eixos (firmados a uma cavidade semicircular, toscamente executada), nada tem que o segure no lugar e por isso escapa constantemente, causando demoras além de grande esforço suplementar.
A carga é, em primeiro lugar, amarrada com firmeza; em seguida, arrasta-se o carretão, como se vê. O capataz sempre dá um jeito de ficar para atrás, empurrando o peso para frente, poupando-se assim à custa dos outros, em cujo proveito canta e dos quais recebe resposta em coro, como já ficou dito.
As casas, que aparecem na gravura, ficam na rua Direita, a grande via comercial; a travessa é a rua das Violas.
1) A técnica da litografia fora inventada cerca de vinte anos antes da publicação do livro de Henry Chamberlain por Senefelder. Esta técnica revolucionou a arte das gravuras, permitia maiores tiragens e as reproduções dos desenhos saíam de forma mais nítida e perfeita.
2) Convencionou-se denominar estes escravos como escravos de ganho e muitas famílias fluminenses sobreviviam quase que exclusivamente do trabalho desses escravos.
Estes escravos invariavelmente deveriam voltar para casa, caso morassem com seus senhores, e entregarem os valores adquiridos nos seus serviços. Vale lembrar, que muitas vezes, não há um excedente para o escravo ou não é atingida a meta do dinheiro que o senhor esperava receber pelos serviços feitos, sendo assim, os escravos acabavam endividando-se muito mais com os seus senhores.
3) É interessante notar que era tão grande a presença das escravas negras trabalhando neste ramo de atividade do comércio, ou seja, das feiras livres nas ruas do Rio de Janeiro, que elas possuíam quase um monopólio desta atividade em relação às mulheres brancas.
4)Trata-se de uma região central da cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX. Como a cidade era pouco provida de aquedutos e a situação deles eram extremamente precárias, em muitas regiões da cidade era vital a utilização destes escravos para o abastecimento de água e a recolha de dejetos produzidos pelas casas.
No caso das pipas de vinho, há uma grande movimentação destes escravos perto da Alfândega, que transportavam esses galões que muito provavelmente eram produzidos em Portugal. Daí a grande quantidade desses negros percebidos pelo pintor.
5) Alguns historiadores acusam Chamberlain de plagiário, afirmando que as figuras dos escravos teriam sido retiradas de desenhos de um artista português chamado Joaquim Cândido Guillobel que esteve no Rio de Janeiro em 1811.
É possível consultar a semelhança deles em: MACHADO, Cândido Guinle de Paula. (ed.); BERGER, Paulo. Usos e costumes do Rio de Janeiro nas figurinhas de Guillobel. Curitiba: edição privada, 1978.
CRÉDITOS
Henry Chamberlain, gravado por Thomas Mc´Lean, Pretos de Ganho, 1819 - 1820, gravura, litografia sobre papel(águatinta colorida), 20 x 28 cm. Coleção Brasiliana – Fundação Estudar, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Doação Fundação Estudar, 2007.
BIBLIOGRAFIA
CHAMBERLAIN, Henry.Vistas e Costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820, segundo desenhos feitos pelo t.te Chamberlain, da Artilharia Real durante os anos de 1819 a 1820 com descrições. Tradução: Rubens Borba de Moraes; São Paulo: Livraria Kosmos Erich Eichner & Cia, 1943.
MOURA, Carlos Eugenio Marcondes. A Travessia da Calunga Grande: Três séculos de Imagens sobre o Negro no Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000.
SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.) e GARCIA, Lucia. Registros Escravos: repertório das fontes oitocentistas pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006.
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico 1800-1850. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BELLUZZO, Ana Maria. Coleção Brasiliana / Fundação Estudar. São Paulo: Via Impressa, 2006.
sábado, 26 de janeiro de 2008
Popol Vuh e a Criação do Homem: Mitologia, Crenças e Religião dos Povos Quiché da Guatemala.
O Popol Vuh apresenta uma versão mitológica da criação do mundo, seguida por um relato das aventuras dos deuses gêmeos, Hunahpú e Xbalanqué, em tempos primordiais, anteriores a criação do ser humano. O triunfo dos deuses do bem contra os deuses do mal, dão lugar a criação do homem à partir do milho e do feijão. A terceira parte do texto se concentra nas origens das linhagens governantes do reino quiché, sua migração até o altiplano da Guatemala, sua conquista dos territórios, o estabelecimento de sua cidade principal e a história de seus reis até a conquista espanhola.
O texto original do século XVI foi perdido. Sabe-se que a primeira obra conhecida estaria escrito no idioma quiché, no entanto, utilizava alfabeto espanhol. No principio e no final do livro, os autores mencionaram que o escreveram porque não era possível ver um livro de tanta importância e tão antigo que não pudesse ser compreendido. Há muitos debates sobre a natureza deste livro, que devia existir antes da conquista espanhola. É provável que tenha sido um manuscrito pictórico similar aos códigos pós-clássicos que se conhecem no centro do México.
O texto mais antigo que se conserva do Popol Vuh é uma tradução do texto quiché feita no início do século XVIII por um frade dominicano chamado Francisco Ximénez, que também fez a primeira tradução conhecida para o espanhol. Ximénez apresentou em coluna dupla o texto quiche junto à versão em espanhol, e o título de sua obra chamava-se “Empiezan las Historias Del Origen de los Índios de esta Província de Guatemala”. Este manuscrito se encontra na coleção Ayer da Biblioteca de Newsberry na cidade de Chicago. Foi extraído da biblioteca da Universidad Nacional de Guatemala pelo abade francês Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, que o compilou pela primeira vez em 1861. Desde então, têm-se realizado diversas edições e traduções desta documentação.
A palavra Popol Vuh significa literalmente “livro da esteira”. Entre os povos meso-americanos, as esteiras eram os símbolos da autoridade e poder dos reis. Eram utilizadas como assentos para os governantes, nobres de alta posição e líderes de linhagens. Por esta razão, o título do livro foi traduzido como “Livro dos Conselhos”.
Os relatos mitológicos do Popol Vuh estão estreitamente relacionados com outros textos mitológicos recompilados no início da época colonial, assim como em muitas tradições orais que se conservam até o presente nas comunidades indígenas da Guatemala e outras partes da Mesoamérica. Nas décadas recentes tem-se demonstrado que também há alguns paralelos relacionados entre o Popol Vuh e as artes clássicas maia. Em particular, as cenas pintadas sobre a cerâmica figuram o período clássico nas terras baixas maias em que são representados alguns deuses e personagens mitológicos relacionados com os mitos do Popol Vuh.
Analisaremos neste trabalho um dos resquícios da cultura indígena da Guatemala e tentaremos entender de uma forma analítica as possíveis interpretações dos três primeiros capítulos da primeira parte do Popol Vuh.
POPOL VUH - HISTÓRIA E MITOLOGIA DOS POVOS QUICHÉ
Os povos do continente americano não se encontravam em um estado de total atraso como se crê freqüentemente. Em vários âmbitos teriam alcançado um elevado grau de sofisticação e adiantamento, como podem mostrar as obras arquitetônicas dos incas em Peru, dos astecas no México e dos maias de Yucatan e Guatemala.
Estes povos conseguiram consolidar uma forte organização política e social, estabeleceram verdadeiros impérios nas regiões centro-americanas, submetendo diversos povos à sua influência política. No campo do desenvolvimento intelectual, os maias, especialmente, conheciam exatamente o movimento dos astros, possuíam um calendário perfeito e uma vasta obra de trabalhos literários e artísticos.
As guerras da Conquista Espanhola foram extremamente destruidoras. A grande cidade do México, naquele tempo, Tenochtitlán, foi arrasada pelos vencedores. A capital dos quichés na Guatemala, chamada Utatlán ou Gumarcaah, pereceu entre as chamas junto aos seus reis e habitantes que foram entregues à escravidão. Não foi diferente em relação a toda a documentação da época, que foi destruída pelos missionários cristãos para que os índios abandonassem as idolatrias e cultos religiosos. No entanto, passado o fervor da perseguição religiosa, alguns missionários se entregaram ao trabalho de reviver as tradições, os costumes e as artes dos indígenas. Algumas dessas informações tem-se conservado na obra de alguns nomes ilustres como: Sahagún, Las Casas, Torquemada e outros escritores.
Mais do que um registro histórico, o Popol Vuh revela a cultura indígena quiché pelo seu aspecto religioso, ou seja, nos traz uma explicação das origens daquele povo e dos fenômenos naturais que os rodeavam. A destruição destes tipos de materiais fora uma tática sistemática utilizada pelos espanhóis numa tentativa de impor-lhes sua cultura, no entanto, não bastava apenas destruir a cultura indígena visando retira-los do estado de selvageria então vigente, era necessário conhecer a cultura indígena para lhes impor através de modelos inteligíveis a religião cristã e acultura-los dos ritos ditos diabólicos.
Vale ressaltar, que a partir da análise que depreenderemos a seguir, vamos notar claramente algumas semelhanças com outras religiões e mitologias, frutos este, da perspectiva utilizada pelo seu primeiro tradutor que tentou expor de forma entendível a tradução do documento.
A primeira relação ou o primeiro discurso presente no documento, é uma descrição estática de como se encontrava o mundo antes da criação. Não havia homem, animais, árvores nem pedras, só existia o céu. A Terra nesta época seria somente mar e céu. Podemos notar neste tipo de descrição um recurso de estilo muito semelhante ao Gênese do Antigo Testamento. A seguir, figuram perante toda esta escuridão e ausência de coisas, as imagens do Criador, do Formador e os Progenitores. Estas divindades estavam todas juntas ocultas debaixo de penas verdes e azuis, caracterizando uma espécie de divindade maior chamada Quetzalcoátl. A natureza destas divindades são “de pensadores e sábios”, sendo assim, vamos notar que, durante todo o documento, estas divindades manterão diálogos entre si planejando a criação das coisas e do homem. Nenhuma entidade toma uma decisão por si só, eles sempre necessitam do aval de seus companheiros deuses.
A seguir, entra em cena uma outra divindade chamada Coração do Céu ou Huracan. O Coração do Céu é formada por divindades menores chamadas Caculhá Huracan (raio de uma perna: relâmpago), Chipi-Caculhá(raio pequeno) e Raxa Caculhá(raio verde: relâmpago grande). O Coração do Céu teria determinado que deveria ser dada a criação do homem, e para isso, dispuseram a criação e o crescimento de todas as formas de vida. No entanto, desta maneira não era possível que houvesse vida, então Tepeu e Gucumatz(Criador e Formador) determinaram que o mar deveria dar lugar a terra. O instante da criação da Terra é narrada com muita eloqüência, mostrando todo o poder que esses deuses tinham. Assim, formaram-se todas as coisas pelo desejo do Coração do Céu, surgiram os rios, as montanhas e os vales. Diferentemente de outras obras, podemos perceber uma importância muito grande dada aos elementos da natureza que nos remetem à uma espécie de visão do paraíso nos tempos da criação.
Após a Terra ser criada, dá-se início à discussão sobre as formas de vida que deveriam habitar os lugares que surgiram. Por isso, determinaram os deuses que deveriam surgir os veados e as aves, e cada um deveria viver segundo o seu habitat e seus costumes.
No entanto, o Criador, o Formador e os Progenitores debateram-se com um pequeno problema. Os deuses deveriam ser invocados, cultuados, solicitados e adorados; não se conseguiu que esses animais falassem para que pudessem invocar seus criadores, sendo assim, os deuses puniram estes animais que agora deveriam lutar pelo seu sustento e estavam todas terminadas a um dia morrer e terem suas carnes consumidas por outros animais. Podemos notar neste tipo de narração, uma semelhança ao Pecado Original cometidos por Adão e Eva, no entanto, há uma diferença básica que os animais seriam os vetores principais do pecado na Terra, e no Antigo Testamento, o pecado original seria oferecido por um animal – a serpente -, só que, afetaria os humanos devido a Adão e Eva terem caído em desgraça. Em ambos os casos, tem-se como um tipo de punição a luta pela sobrevivência.
Uma vez que, os deuses não teriam conseguido serem invocados e adorados, quiseram arriscar e tentar novamente. Experimentaram criar um ser que lhes fosse obedientes e que pudesse lembra-los e adora-los; este ser seria a criatura humana. Na primeira tentativa fizeram a carne do homem de lodo e barro, porém, o mesmo se desfazia e quando entrava na água amolecia, estes seres falavam, no entanto, não tinham entendimento nem racionalidade. Tendo os deuses falhado outra vez, destruíram estes seres e deram início à um longo debate de como deveriam reunir os meios para que o homem sustentasse, alimentasse, lembrasse e invocasse os deuses.
Desta forma, entram os deuses em consulta com Ixpiyacoc e Ixmucané que eram os Progenitores e eram também adivinhos. Estes adivinhos tiraram a sorte nos grãos de milho e nos grãos de tizté(feijões roxos) para que descobrissem se deveriam talhar os homens em madeira ou talharem-lhes através de outro material. Em consulta aos adivinhos, declarou-se que desta vez daria certo, e que os homens deveriam ser talhados de madeira e que estes falarão e conversarão sobre a face da terra. E assim, surgiram os bonecos de madeira, ou seja, os homens. Estes homens falavam, mas seus rostos estavam secos, seus pés e suas mãos não tinham consistência, não tinham sangue, nem substância, suas carnes eram amarelas. E por este motivo, ou seja, de certa debilidade, estes bonecos de madeira não pensavam nem louvavam seus criadores. Os deuses resolveram destruir estes bonecos de pau pela sua desobediência, logo, o Coração do Céu ordenou que um grande dilúvio pairasse sobre as cabeças dos bonecos de pau e os destruísse.
Os deuses novamente teriam falhado, e então tentaram uma ultima vez criar o homem que os adorariam e os venerariam. Fizeram o homem que tinha suas carnes provenientes do feijão e a mulher que teria suas carnes provenientes de espadana. Espadana, segundo fonte do dicionário Houaiss, pode significar barbatana de peixe ou cauda de cometa. Creio que neste tipo de interpretação, a mulher poderia ter sido feita da barbatana de um peixe, pois, embora estas civilizações tinham um contato com o mundo astronômico, este elemento, ou seja, a barbatana de um peixe é muito mais próxima do cotidiano e da alimentação destes povos. O incidente novamente aconteceu, estes seres teriam se tornado melhores que os seus antecessores, porém, mais uma vez os homens não lembravam e nem falavam com os seus criadores.
Por esta razão, ou seja, pela sua vaidade, frivolidade e altivez, os homens foram novamente exterminados e dá-se início a uma descrição apocalíptica de como teria sido o fim destes homens. Alguns seres foram invocados pelos deuses para que acabassem com os homens; Xecotcovach lhes furaram os olhos, Camalotz teriam cortado suas cabeças, Cotzbalam lhe devoraram as carnes e Tucumbalam lhes quebraram os ossos.
E para castiga-los por não terem se lembrado e nem venerado seus criadores, há uma grande revolta do mundo animal e dos “seres” não dotados de vida contra os humanos. Os homens passaram a serem devorados e caçados por todos os animais, que agora falavam, até as pedras começaram a falar e a atacar os homens por serem mau tratadas no ato de se fazer fogo. Todas os animais e coisas, nesse instante, voltam-se contra o homem que irá ver o seu fim mais uma vez.
CONCLUSÃO
Resumindo o conteúdo das três partes do Popol Vuh; A primeira parte é uma descrição da criação do mundo e da origem do homem, que depois de vários fracassos foi feito de milho e feijão, o alimento que constituía a base da alimentação dos maias. A segunda parte trata das aventuras dos jovens semideuses Hunahpú e Ixbalanqué que termina com o castigo dos malvados, e de seus pais sacrificados pelos gênios do mau em seu reino sombrio de Xibalbay.
A terceira parte é uma história detalhada referida à origem dos povos indígenas da Guatemala, suas emigrações, sua distribuição no território, suas guerras e o predomínio da raça quiché sobre as outras até pouco antes da conquista espanhola. Descreve também a história dos Reis e a história de conquistas de outros povos.
Como podemos notar através da narrativa do Popol Vuh, o livro apresenta um forte caráter religioso e cultural. Este tipo de documentação talvez represente um dos mais importantes registros sobre as civilizações que habitaram a América Central que se tem conhecimento.
O Popol Vuh apresenta em seu interior um discurso profético muito semelhante ao Antigo Testamento, e o mesmo é declarado pelo seu autor desconhecido, que se trata do primeiro livro, ou seja, a primeira obra da humanidade que veio a falar de suas origens e destinos. É interessante notar que no objetivo dos deuses em fazer uma criatura que pudesse adora-los e cultua-los, os mesmos o fazem através da tentativa e do erro, o que a grosseiro modo se assemelha com uma relativa evolução das espécies. Todo este fundo comum entre o Popol Vuh , o Antigo Testamento e a pluralidade de idéias muito semelhante à outras religiões, irão dar margem para alguns missionários cristãos enxergarem em Quetzalcóatl o próprio Jesus Cristo e justificar através da dominação espanhola, o surgimento de um último império, um ultimo reino, um último sol.
BIBLIOGRAFIA:
Paulo Suess(org). A Conquista Espiritual da América Latina Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992
Adrian Recinos. Popol Vuh: Las antiguas historias Del Quiché. Fondo Cultura Economica Mexico,1992
Leslie Bethel(org). História da América Latina. São Paulo: Edusp, v.1. 1997
terça-feira, 15 de janeiro de 2008
Resenha Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo.
Luciano Figueiredo em sua presente obra Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII, nos apresenta uma importante abordagem sobre o tema da família e a sua especificidade no âmbito do cotidiano da sociedade mineira; Mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Luciano tem uma série de trabalhos publicados sobre as Minas Gerais setecentistas analisando estes e outros objetos de estudo das sociedades coloniais na América Portuguesa.
O eixo principal da análise feita por Luciano em Barrocas Famílias, está na dimensão peculiar que a História Social propôs ao investigar o cotidiano dos sentimentos, as paixões, os afetos, as violências, solidariedades e atitudes no domínio da família envolvendo as populações das Minas Gerais. Os principais tipos de documentos que possibilitaram com que fosse feita esta pesquisa são os livros de devassas, esta documentação representa a apuração minuciosa de delitos cometidos e ou denunciados para a mesa dos visitadores episcopais mediante a convocação de testemunhas, onde, de maneira geral, seus suspeitos e condenados seriam transgressores do modo de conduta que prega o cristianismo.
No primeiro capítulo do livro, “Poder, poderes e a vida familiar”, uma das questões que eram amplamente discutidas tanto pelo Estado português sob o Padroado Régio como pelas autoridades eclesiásticas é a da necessidade de implantação de um modelo de família legítimo na Colônia, na luta pela defesa do casamento e pela constituição de famílias legais, a Igreja irá investigar através das visitações diocesanas uma gama de desvios delatados, porém, uma das acusações que possuem maior relevância numérica são aqueles relacionados aos “tratos ilícitos” entre homens e mulheres: o concubinato. Há uma clara intenção do Estado metropolitano em estimular a formação de famílias de origem portuguesas, uma vez que o processo de povoamento do Brasil como colocou Caio Prado Jr, não se fazia pela emigração de famílias constituídas e sim pela vinda de homens sozinhos que tentam a sorte de fazer fortuna na Colônia; acrescenta-se a isso a grande escassez de mulheres brancas. Somente com o desenvolvimento da mineração nas Gerais no século XVIII, é a que a Coroa necessitou tomar medidas mais eficazes em sua política familiar, o caráter urbano que concentra enormes contingentes populacionais, a extrema diversificação de atividades, a enorme massa de desclassificados sociais, fez com que fosse necessário um maior controle social das populações mineiras; sendo assim, a expansão das famílias legítimas seria uma peça vital para manter em funcionamento os mecanismos do sistema colonial e levar relativa paz social à Colônia.
Com este mesmo sentido, legislava-se a fim de preservar a pureza racial como critério para acesso de cargos de importância política e social na comunidade, sem nos esquecer que, existia uma sensação de guerra racial latente devido a desproporção numérica entre brancos e negros e que mesmo os mestiços representavam para a elite colonial uma população indisciplinada, desclassificada e desligadas do sistema escravista-exportador. Resumindo, embora este controle social seja pretendido pelo Estado, o próprio não possui instrumentos para tal, logo, quem irá efetivamente exercer o poder de polícia na região será a Igreja para que se mantenha este quadro de estabilidade colonial.
Aliada às pretensões de controle social anteriormente descrito, deve-se lembrar que a Igreja mineira e o clero colonial vivem os efeitos da reforma católica e do Concílio de Trento, o sínodo da Bahia, em 1707, consolidou as orientações do Concílio através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Surgia assim, uma necessidade da Igreja se institucionalizar efetivamente, a entrada e fixação de ordens religiosas estavam proibidas no estado do Brasil, e todas as responsabilidades de assistência espiritual e o zelo pelas condutas morais das populações mineiras serão dadas ao clero secular.
A dificuldade de efetivar-se o sacramento do matrimônio não era somente um problema moral, em uma população extremamente móvel principalmente em seus substratos intermediários, era difícil uma fixação e constituição de uma família; além de os processos de casamentos serem muito dispendiosos e burocráticos para uma sociedade repleta de desclassificados e de pessoas sem bens e ofícios.
Os meio utilizados pela Igreja para coibir essas transgressões eram as visitações episcopais, valendo-se do julgamento de condutas, promove-se uma ação judicial para observar e punir as práticas cotidianas das populações; havia punições com cobranças pecuniárias, excomunhões, separações e mais raramente castigos físicos e prisões, todas essas medidas remetiam a população ao poder de julgar da Mesa de Visitação. Todavia, a Igreja mineira tinha uma grande deficiência em organizar um trabalho mais doutrinário, havia uma certa tolerância para com as reincidências, por isso, a Igreja necessitava deste aparelho que seria um pouco mais tolerante com os desvios das populações, sem esquecer que, para todas as delações feitas sempre deveria de haver o julgamento da mesa..
Vale lembrar também a criação da Inquisição que agora era responsável por investigar ou inquirir sobre os crimes contra a fé, todavia, a criação dos tribunais inquisitoriais chegou a levar em choque alguns bispos e os inquisidores por causa de uma sensível perda do episcopado de suas tradicionais funções. Com a Reforma Tridentina, veio estabelecer-se que o foco das preocupações do episcopado deveriam ser o exercício da confissão, a verificação da situação de confrarias dos penitentes, o catecismo e a responsabilidade pelos seminários locais; além de receberem denuncias contra criminosos, que eram compiladas e punidas. Sendo assim, as visitas pelo território português não seriam somente uma ocupação exclusiva dos bispados, as visitações episcopais de certa forma deveriam se preocupar mais com os aspectos materiais e jurídicos inerentes à estruturação do trabalho religioso na diocese: como são feitos os registros de batismos e mortes, o estado dos clérigos, os limites territoriais; casos como denúncias de desvios, práticas imorais e heresias poderiam ser levadas ao Tribunal do Santo Ofício. Sem nos esquecermos que as visitas às Minas Gerais não faziam vigilância para com dissidentes não-católicos, como judeus e protestantes.
A visitação procedia a uma devassa, as devassas são informações de delitos recebidas pelo visitador, onde é ouvido testemunhas e dado um julgamento ao desvio cometido. Após a criação do Bispado de Mariana em 1745-48, as visitações irão ter um significado mais preciso de disciplinar e punir condutas desviantes, além também de cuidar da administração eclesiástica local. A equipe básica que compunha esses tribunais diocesanos era formada pelo visitador-geral – nomeado pelo bispo, caso não fosse ele mesmo –, um tesoureiro e um escrivão que era responsável por registrar as narrativas dos depoentes. No ato de nomeação do visitador já estariam definidas quais as comarcas eclesiásticas e localidades a serem percorridas pelas visitações. Quando se dedicava às inquirições, geralmente o visitador necessitava convocar testemunhas entre os moradores da localidade, o processo de convocação era feito de duas formas: ou estaria divulgado em um edital ou as testemunhas deveriam apresentar-se voluntariamente. Esses interrogatórios consistiriam numa relação de cerca de quarenta quesitos dos quais contavam uma série de práticas consideradas criminosas: jogo, toda sorte de crenças e práticas mágicas, concubinato, incesto, usura, sodomia, desvios que atentassem contra a conduta cristã e heresias.
Assim, caso um fiel tivesse conhecimento de uma pessoa envolvida num desses quesitos deveriam denuncia-la quando da chegada do visitador. Havia também formas de convocações nominais do qual eram chamados a depor pessoas destacadas socialmente ou indicadas pelo vigário local. No entanto, grande parte dos denunciantes acabavam por pertencer aos grupos intermediários da sociedade mineradora. Um traço muito comum feita nas acusações das devassas era que as pessoas utilizavam expressões como “há escândalo na vizinhança”, “é público e notório”, “com escândalo geral” e derivações semelhantes para que o depoente se isentasse de qualquer envolvimento particular no caso e afastasse quaisquer suspeitas de uma motivação pessoal da denúncia que também eram punidas com rigor.
As visitas diocesanas que percorreram e percutiram o território mineiro transcorrem de maneira complementar a ação dos funcionários do Santo Oficio na região. Desta forma, os visitadores do Santo Oficio deveriam ser bem qualificados intelectualmente e de prestígio para com a Igreja. Depois do julgamento dos processos coligidos, realizado na sede do bispado, outra visita era feita para condenar aqueles que mereciam punições.
Algumas das visitas em Minas Gerais colonial contaram com a participação direta de comissários do Santo Oficio, membros da Inquisição portuguesa que acompanhavam o processo de devassas na região, logo, embora as populações mineiras fossem de certa forma preservadas do Tribunal da Inquisição, as vezes como quando da presença do Dr. Geraldo José Abranches entre 1742 e 1762 na condição de visitador episcopal, fazia o elo da pequena inquisição para com a grande inquisição. As denuncias ao Tribunal do Santo Oficio poderiam ser feitas pelo próprio clero local, por intermédio dos comissários; a absoluta maioria das visitações escapou da alçada do Tribunal do Santo Oficio e as suas penas eram geralmente mais brandas que as da Inquisição. A Inquisição parecia exercer a verdadeira “pedagogia do medo” que marcava o comportamento do inquisidor para com o acusado, fazendo com o que o acusado caísse nas contradições de suas próprias palavras, uma vez que as visitas episcopais preocupavam-se em fazer os questionamentos pré-estabelecidos.
No segundo capítulo “Tensões na Conjugalidade Mineira”, como o próprio nome diz, coloca em questão as relações conjugais que eram estabelecidas através do matrimonio. São expostos inúmeros casos de tensões existentes no interior do modelo legítimo de família que puderam ser verificados através das devassas; também são expostos as condições em que viviam os escravos inseridos dentro desse ambiente urbano das Minas Gerais, os casos de adultérios que fazem os senhores com seus escravos e a questão do casamento de escravos.
Luciano a partir das devassas ilustra as separações e os conflitos no interior dos relacionamentos, as violências praticadas contra as mulheres por maridos que eram movidos pelo ciúme, a intenção da igreja em perpetuar o caráter indissolúvel do matrimonio, as práticas de mulheres que não eram compatíveis com o seu papel de submissão no interior do relacionamento, e as formas de trabalho e sobrevivência que restavam a um enorme contingente de mulheres escravas e alforriadas que era a prostituição na maioria das vezes. Também são ilustradas as práticas de adultério que eram favorecidas pelo afastamento prolongado do marido nas Minas, o controle feminino de pequenas atividades comerciais que lhes davam certa independência e autonomia para estabelecerem novos amores etc.
O terceiro capítulo, “Cotidiano e Resistência”, reforça as praticas que foram se desenvolvendo através do cotidiano das populações mineiras que muitas vezes não eram compatíveis com os padrões vigentes da Igreja. Surgem assim, outras formas de convívio familiar e extraconjugais como os incestos, o apadrinhamento e a criação de crianças enjeitadas, o infanticídio, a formação de alianças e sistemas de parentescos entre famílias de grupos empobrecidos; é discutida a difusão da prática do concubinato como elemento motor do aumento da miscigenação da população colonial, enfim, reforça os laços de resistência que praticavam as populações mineiras dada as inúmeras restrições que esses desclassificados sociais tem para constituir uma família de um modelo tradicional pretendido pela Coroa e a Igreja.
O quarto capítulo, “O Amor Possível” versa basicamente sobre as condições com que se desenvolveram essas famílias, que aparentemente tomaram um rumo diferenciado do modelo familiar patriarcal dominante em outras áreas da Colônia. Vemos que a Igreja e o Estado não conseguiram instituir o modelo familiar que tanto queriam, embora, as visitações e o Santo Oficio tenham agido para combater a multiplicação de uniões meramente consensuais. Este capítulo reforça como o cotidiano desenvolveu essas uniões e as bases de um modelo de família distinto do pretendido pelas classes dominantes, as populações mineiras encontram diversas maneiras para manterem os seus relacionamentos e não serem condenados pela Igreja.
Como conclusão, temos que a vida familiar nas Minas Gerais do século XVIII transcorreu analogamente à margem das instituições dominantes. A vida familiar dos habitantes nos núcleos urbanos organizou-se com base na tensão entre os instrumentos de poder que buscaram enquadrar as uniões no seio do modelo cristão de família legitima. Desassistidos espiritualmente, excluídos socialmente e afastados dos veículos de transmissão dos valores culturais, o cotidiano irá adaptar a família mineira a desenvolver-se no âmbito de suas necessidades primordiais. Vemos que nesta sociedade a prostituição pode muito bem conviver ao lado de uma certa estrutura familiar, que as festas e batuques dos negros conviviam ao lado dos cultos disciplinados das Irmandades, enfim, de maneira geral, Barrocas famílias ilustra que as populações mineiras lutaram contra a imposição dos valores da classe dominante, porém, este confronto não aconteceu de maneira direta, pois, este enfrentamento levaria à sua exclusão da Igreja. A família, a luta entre a religião oficial e a religiosidade popular em um cenário de amor e raiva são as figuras que ilustram de maneira clara e objetiva o contexto da vida familiar nas Minas Gerais setecentistas.
Bibliografia utilizada como referência para esta resenha.
FIGUEIREDO, Luciano – Barrocas famílias – vida familiar m Minas Gerais no século XVIII. São Paulo, Hucitec, 1997.
SOUZA, Laura de Mello e – Desclassificados do Ouro – a pobreza mineira no século XVIII. (4ª edição). Rio de Janeiro, Graal , 2004.
SOUZA, Laura de Mello e(org.) – História da Vida Privada – vol 1 – Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
FURTADO, Junia Ferreira – O livro da Capa Verde – o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo, Annablume,1996.
BOXER, Charles Ralph – A idade de ouro do Brasil – dores de crescimento da sociedade colonial. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2008
O Outono do Patriarca de Gabriel García Márquez.
Gabriel García Márquez nasceu em 6 de novembro de 1928 em Arataca, cidade litorânea da Colômbia. Estudou direito, porém, logo se apaixonou pelo jornalismo, que o marcaria profundamente a optar pela carreira de escritor. Gabriel fora um militante apaixonado das esquerdas latino-americanas, viveu muitos anos fora de seu país, foi um dos grandes defensores do regime de Fidel Castro, fez severas críticas aos norte-americanos e quase chegou a realizar uma greve contra o ditador chileno Pinochet, ameaçando parar de escrever. Em 1982, Gabriel foi agraciado pelo Prêmio Nobel de Literatura quinze anos após de ter escrito seu maior sucesso “Cem Anos de Solidão”, que foi traduzido em 35 idiomas e estima-se ter vendido cerca de 30 milhões de exemplares.
A obra de Gabo, como é carinhosamente chamado por fãs e amigos, é geralmente caracterizada por uma América Latina estereotipada e, desta forma, são refletidas as mazelas da colonização através da recorrência usual do autor em usar como personagens latifundiários, ditadores e caudilhos. A sua preocupação estilística e social também era compartilhada por outros escritores, sendo assim, surge uma nova corrente literária intitulada Realismo Mágico; e seus maiores representantes foram escritores latino-americanos como os argentinos Júlio Cortazar e Jorge Luis Borges e o cubano Alejo Carpentier.
Em 1975, Gabo lança “O Outono do Patriarca” que narra a absurda história de um ditador tão solitário quanto autoritário. Tudo se passa em um país imaginário na região do Caribe, em um lugar praticamente isolado das relações com os outros países, onde governa um tirano que está no poder não se sabe há quanto tempo e nem se sabe exatamente como chegou ao poder. Grande parte da história se passa na residência do presidente, um lugar totalmente atípico do que se convenciona ser o centro de poder e mando de um país. Em meio aos gabinetes de ministérios e funcionários do Estado, encontram-se vacas andando por todos os lados, jogando suas excretas sobre papéis de importância burocrática; encontram-se uma infinidade de galinhas e passarinhos enjaulados. O Patriarca, cujo nome não é citado em nenhum momento do livro, tem uma idade indefinida entre 107 e 232 anos e devia ter chegado ao poder através de um golpe de Estado. Passados muitos anos de governo, o ditador tinha a dúvida de como a nação se comportaria caso ele morresse; sendo assim, resolveu usar o seu sósia Patrício Aragonés, dessa vez para simular a sua morte. O resultado é que em meio a poucas manifestações de carinho ao Patriarca, a população invade o palácio presidencial saqueando-o, o ditador vê “seu” corpo sendo arrastado pelo chão enquanto as multidões comemoravam a vinda da liberdade proporcionada pela morte do tirano.
Tendo tido a oportunidade de presenciar o que lhe aconteceria caso morresse, o ditador resolve por em ação o seu plano de vingança e junto aos poucos generais que ainda lhe eram leais dá início ao maior período da repressão vista naquele país: manda matar e torturar milhares de pessoas que desonraram a sua memória em atos de vandalismo. A figura deste ditador é trágica, ele prevê seus futuros atos de despotismo através da premonição de pitonisas e cartas de adivinhação; embora tenha poderes nunca antes vistos por um governante em seu país, ele vive em uma profunda solidão e depressão convivendo com uma hérnia em seus testículos que lhe causavam infindáveis dores para urinar e fazia com que sempre viesse a desmaiar e dormir na mesma posição. Uma espécie de síndrome do pânico assola a mente do ditador, antes de dormir deve fechar uma série de janelas, portas, cadeados e fechaduras com medo de que pudesse estar sendo vigiado por alguém; sustenta um amor sacramental pela sua mãe Bendicíon Alvarado que quando morre vira padroeira da nação e é beatificada trapaceiramente sob o pretexto de que depois de morta, seu corpo não teria entrado em processo de decomposição – prova de sua santidade –, além disso, o Patriarca rompe com a Igreja para sacramenta-la.
Além da solidão, o ditador sempre foi incapaz de amar alguém; e esta convicção da impossibilidade de se amar alguém irá engendrar no ditador uma amargura ontológica que irá se traduzir na própria empresa do ódio e irá culminar no exercício cego do poder pelo poder. “Aquele que manda” como foi várias vezes citado no livro, chegou a “achar” que amava alguém e este amor foi por Leticina Nazareno, com quem teve um filho chamado Emanuel, porém, o ditador torna-se alvo de seu próprio poder e é praticado um atentado que acaba com a vida de sua mulher e filho que foram devorados por cães especialmente treinados. No ímpeto de vingança, o “grande macho” dá início a uma outra onda de violência totalitária, realizando milhares de prisões e fuzilamentos na procura dos criminosos de Letícia e Emanuel. Algumas semanas depois, nem se lembrava mais de Leticina Nazareno e voltou a copular com suas concubinas como outrora.
O Patriarca está sempre a andar com uma bolinha de gude, uma espécie de amuleto que representa o símbolo do poder, como se pudesse segurar o planeta em suas mãos e tivesse pleno controle dele. O ditador é apaixonado pelo poder, porém, não sabe o que fazer com ele. Totalmente movido pela ambição, do qual, desafia as grandes potências da Europa, rompe com a Igreja para que não tenha seu poder submetido com ninguém senão com ele mesmo. O déspota parece se alimentar das pessoas que vivem ao seu redor, todos os seus colaboradores são manipulados e dispensados quando não eram mais úteis sem o menor constrangimento, ele era temido por todos, e as poucas pessoas do qual confiava era o general Rodrigo de Aguillar, somente pelo motivo de ter vencido o Patriarca em uma partida de dominó, ao passo que, todos os outros desafiantes perdiam o jogo com o medo de enfrentarem represálias.
Mesmo assim, o Patriarca parece temer a sua própria sombra, cede às suas forças armadas munições misturadas com areia de praia com medo de sofrer um levante militar, tenta enaltecer as grandezas de seu governo através dos mais diversos devaneios, mantendo paralíticos e leprosos nos jardins da mansão presidencial.
A figura da mansão presidencial é mais uma alegoria do completo caos que os regimes totalitários e ditatoriais, sobretudo na visão latino-americana, imergem nas sociedades através da coerção, manipulação e repressão. O próprio fato de o autor omitir o nome do país e o nome do governante impõe uma fácil associação com os regimes ditatoriais que se espalharam pela América Latina. Trata-se de um país subdesenvolvido, com sua base voltada na agricultura, uma grande massa de pessoas incultas e sob a influência das grandes potências.
Quanto às características formais do livro, somente há vírgulas e pontos finais, caracterizando a narrativa como se fosse descrita através de um sonho ou visão contada, do qual, não se pode definir muito bem quem está narrando ou quem está falando: estilo este típico do Realismo Mágico. Essa característica irá perfeitamente ao encontro da proposta do livro, uma vez que o destino trágico do ditador já estava previsto pela adivinhação da pitonisa, que foi assassinada por temer que o segredo de Estado de sua morte viesse a público. Embora o ditador tenha a sua idade indefinida, ele não era imortal e fatalmente o seu dia iria chegar, porém, não se sabe quando, somente se sabe que esses dias irão suceder-se como todos os outros: na absoluta solidão.
O alcance simbólico deste ditador é universal e Gabo teria escrito o livro e feito suas pesquisas na Espanha durante o período franquista, de onde provém grande parte de sua inspiração; todavia, o próprio autor também havia mencionado que este estilo de um General-presidente, “Dono da Nação”, fanfarrão, eloqüente e dotado de um estilo unipessoal de exercício do poder foi também inspirado em Juan Vicente Gómez (1857-1935), ditador venezuelano que governou o país de 1908 a 1935.
Resumindo através de uma abordagem temática o conteúdo do livro, ele basicamente versa em seu início sobre o perfil do ditador e o seu modus vivendi, depois coloca o ditador como o dono do poder e dono de todas as coisas e posteriormente caracteriza e relaciona a estrutura patrimonial do Estado. Por fim, a natureza edipiana do ditador, ou seja, como se escancaram as complexidades psicológicas do autor desde a sua gestação até o seu cotidiano como soberano da nação.
O Outono do Patriarca é uma alegoria das ditaduras latino-americanas e a grande contribuição que esta obra apresenta é justamente a construção de um arquétipo praticamente perfeito de um ditador do qual o poder gira em sua órbita. Vale lembrar que este modelo é altamente aplicável nos dias de hoje, basta analisar a postura política de Hugo Chávez que, sem sombra de dúvida, é um herdeiro da política de Juan Vicente Gómez e do caudilhismo.