terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Resenha Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo.


Luciano Figueiredo em sua presente obra Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII, nos apresenta uma importante abordagem sobre o tema da família e a sua especificidade no âmbito do cotidiano da sociedade mineira; Mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Luciano tem uma série de trabalhos publicados sobre as Minas Gerais setecentistas analisando estes e outros objetos de estudo das sociedades coloniais na América Portuguesa.

O eixo principal da análise feita por Luciano em Barrocas Famílias, está na dimensão peculiar que a História Social propôs ao investigar o cotidiano dos sentimentos, as paixões, os afetos, as violências, solidariedades e atitudes no domínio da família envolvendo as populações das Minas Gerais. Os principais tipos de documentos que possibilitaram com que fosse feita esta pesquisa são os livros de devassas, esta documentação representa a apuração minuciosa de delitos cometidos e ou denunciados para a mesa dos visitadores episcopais mediante a convocação de testemunhas, onde, de maneira geral, seus suspeitos e condenados seriam transgressores do modo de conduta que prega o cristianismo.

No primeiro capítulo do livro, “Poder, poderes e a vida familiar”, uma das questões que eram amplamente discutidas tanto pelo Estado português sob o Padroado Régio como pelas autoridades eclesiásticas é a da necessidade de implantação de um modelo de família legítimo na Colônia, na luta pela defesa do casamento e pela constituição de famílias legais, a Igreja irá investigar através das visitações diocesanas uma gama de desvios delatados, porém, uma das acusações que possuem maior relevância numérica são aqueles relacionados aos “tratos ilícitos” entre homens e mulheres: o concubinato. Há uma clara intenção do Estado metropolitano em estimular a formação de famílias de origem portuguesas, uma vez que o processo de povoamento do Brasil como colocou Caio Prado Jr, não se fazia pela emigração de famílias constituídas e sim pela vinda de homens sozinhos que tentam a sorte de fazer fortuna na Colônia; acrescenta-se a isso a grande escassez de mulheres brancas. Somente com o desenvolvimento da mineração nas Gerais no século XVIII, é a que a Coroa necessitou tomar medidas mais eficazes em sua política familiar, o caráter urbano que concentra enormes contingentes populacionais, a extrema diversificação de atividades, a enorme massa de desclassificados sociais, fez com que fosse necessário um maior controle social das populações mineiras; sendo assim, a expansão das famílias legítimas seria uma peça vital para manter em funcionamento os mecanismos do sistema colonial e levar relativa paz social à Colônia.

Com este mesmo sentido, legislava-se a fim de preservar a pureza racial como critério para acesso de cargos de importância política e social na comunidade, sem nos esquecer que, existia uma sensação de guerra racial latente devido a desproporção numérica entre brancos e negros e que mesmo os mestiços representavam para a elite colonial uma população indisciplinada, desclassificada e desligadas do sistema escravista-exportador. Resumindo, embora este controle social seja pretendido pelo Estado, o próprio não possui instrumentos para tal, logo, quem irá efetivamente exercer o poder de polícia na região será a Igreja para que se mantenha este quadro de estabilidade colonial.

Aliada às pretensões de controle social anteriormente descrito, deve-se lembrar que a Igreja mineira e o clero colonial vivem os efeitos da reforma católica e do Concílio de Trento, o sínodo da Bahia, em 1707, consolidou as orientações do Concílio através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Surgia assim, uma necessidade da Igreja se institucionalizar efetivamente, a entrada e fixação de ordens religiosas estavam proibidas no estado do Brasil, e todas as responsabilidades de assistência espiritual e o zelo pelas condutas morais das populações mineiras serão dadas ao clero secular.

A dificuldade de efetivar-se o sacramento do matrimônio não era somente um problema moral, em uma população extremamente móvel principalmente em seus substratos intermediários, era difícil uma fixação e constituição de uma família; além de os processos de casamentos serem muito dispendiosos e burocráticos para uma sociedade repleta de desclassificados e de pessoas sem bens e ofícios.

Os meio utilizados pela Igreja para coibir essas transgressões eram as visitações episcopais, valendo-se do julgamento de condutas, promove-se uma ação judicial para observar e punir as práticas cotidianas das populações; havia punições com cobranças pecuniárias, excomunhões, separações e mais raramente castigos físicos e prisões, todas essas medidas remetiam a população ao poder de julgar da Mesa de Visitação. Todavia, a Igreja mineira tinha uma grande deficiência em organizar um trabalho mais doutrinário, havia uma certa tolerância para com as reincidências, por isso, a Igreja necessitava deste aparelho que seria um pouco mais tolerante com os desvios das populações, sem esquecer que, para todas as delações feitas sempre deveria de haver o julgamento da mesa..

Vale lembrar também a criação da Inquisição que agora era responsável por investigar ou inquirir sobre os crimes contra a fé, todavia, a criação dos tribunais inquisitoriais chegou a levar em choque alguns bispos e os inquisidores por causa de uma sensível perda do episcopado de suas tradicionais funções. Com a Reforma Tridentina, veio estabelecer-se que o foco das preocupações do episcopado deveriam ser o exercício da confissão, a verificação da situação de confrarias dos penitentes, o catecismo e a responsabilidade pelos seminários locais; além de receberem denuncias contra criminosos, que eram compiladas e punidas. Sendo assim, as visitas pelo território português não seriam somente uma ocupação exclusiva dos bispados, as visitações episcopais de certa forma deveriam se preocupar mais com os aspectos materiais e jurídicos inerentes à estruturação do trabalho religioso na diocese: como são feitos os registros de batismos e mortes, o estado dos clérigos, os limites territoriais; casos como denúncias de desvios, práticas imorais e heresias poderiam ser levadas ao Tribunal do Santo Ofício. Sem nos esquecermos que as visitas às Minas Gerais não faziam vigilância para com dissidentes não-católicos, como judeus e protestantes.

A visitação procedia a uma devassa, as devassas são informações de delitos recebidas pelo visitador, onde é ouvido testemunhas e dado um julgamento ao desvio cometido. Após a criação do Bispado de Mariana em 1745-48, as visitações irão ter um significado mais preciso de disciplinar e punir condutas desviantes, além também de cuidar da administração eclesiástica local. A equipe básica que compunha esses tribunais diocesanos era formada pelo visitador-geral – nomeado pelo bispo, caso não fosse ele mesmo –, um tesoureiro e um escrivão que era responsável por registrar as narrativas dos depoentes. No ato de nomeação do visitador já estariam definidas quais as comarcas eclesiásticas e localidades a serem percorridas pelas visitações. Quando se dedicava às inquirições, geralmente o visitador necessitava convocar testemunhas entre os moradores da localidade, o processo de convocação era feito de duas formas: ou estaria divulgado em um edital ou as testemunhas deveriam apresentar-se voluntariamente. Esses interrogatórios consistiriam numa relação de cerca de quarenta quesitos dos quais contavam uma série de práticas consideradas criminosas: jogo, toda sorte de crenças e práticas mágicas, concubinato, incesto, usura, sodomia, desvios que atentassem contra a conduta cristã e heresias.

Assim, caso um fiel tivesse conhecimento de uma pessoa envolvida num desses quesitos deveriam denuncia-la quando da chegada do visitador. Havia também formas de convocações nominais do qual eram chamados a depor pessoas destacadas socialmente ou indicadas pelo vigário local. No entanto, grande parte dos denunciantes acabavam por pertencer aos grupos intermediários da sociedade mineradora. Um traço muito comum feita nas acusações das devassas era que as pessoas utilizavam expressões como “há escândalo na vizinhança”, “é público e notório”, “com escândalo geral” e derivações semelhantes para que o depoente se isentasse de qualquer envolvimento particular no caso e afastasse quaisquer suspeitas de uma motivação pessoal da denúncia que também eram punidas com rigor.

As visitas diocesanas que percorreram e percutiram o território mineiro transcorrem de maneira complementar a ação dos funcionários do Santo Oficio na região. Desta forma, os visitadores do Santo Oficio deveriam ser bem qualificados intelectualmente e de prestígio para com a Igreja. Depois do julgamento dos processos coligidos, realizado na sede do bispado, outra visita era feita para condenar aqueles que mereciam punições.

Algumas das visitas em Minas Gerais colonial contaram com a participação direta de comissários do Santo Oficio, membros da Inquisição portuguesa que acompanhavam o processo de devassas na região, logo, embora as populações mineiras fossem de certa forma preservadas do Tribunal da Inquisição, as vezes como quando da presença do Dr. Geraldo José Abranches entre 1742 e 1762 na condição de visitador episcopal, fazia o elo da pequena inquisição para com a grande inquisição. As denuncias ao Tribunal do Santo Oficio poderiam ser feitas pelo próprio clero local, por intermédio dos comissários; a absoluta maioria das visitações escapou da alçada do Tribunal do Santo Oficio e as suas penas eram geralmente mais brandas que as da Inquisição. A Inquisição parecia exercer a verdadeira “pedagogia do medo” que marcava o comportamento do inquisidor para com o acusado, fazendo com o que o acusado caísse nas contradições de suas próprias palavras, uma vez que as visitas episcopais preocupavam-se em fazer os questionamentos pré-estabelecidos.

No segundo capítulo “Tensões na Conjugalidade Mineira”, como o próprio nome diz, coloca em questão as relações conjugais que eram estabelecidas através do matrimonio. São expostos inúmeros casos de tensões existentes no interior do modelo legítimo de família que puderam ser verificados através das devassas; também são expostos as condições em que viviam os escravos inseridos dentro desse ambiente urbano das Minas Gerais, os casos de adultérios que fazem os senhores com seus escravos e a questão do casamento de escravos.

Luciano a partir das devassas ilustra as separações e os conflitos no interior dos relacionamentos, as violências praticadas contra as mulheres por maridos que eram movidos pelo ciúme, a intenção da igreja em perpetuar o caráter indissolúvel do matrimonio, as práticas de mulheres que não eram compatíveis com o seu papel de submissão no interior do relacionamento, e as formas de trabalho e sobrevivência que restavam a um enorme contingente de mulheres escravas e alforriadas que era a prostituição na maioria das vezes. Também são ilustradas as práticas de adultério que eram favorecidas pelo afastamento prolongado do marido nas Minas, o controle feminino de pequenas atividades comerciais que lhes davam certa independência e autonomia para estabelecerem novos amores etc.

O terceiro capítulo, “Cotidiano e Resistência”, reforça as praticas que foram se desenvolvendo através do cotidiano das populações mineiras que muitas vezes não eram compatíveis com os padrões vigentes da Igreja. Surgem assim, outras formas de convívio familiar e extraconjugais como os incestos, o apadrinhamento e a criação de crianças enjeitadas, o infanticídio, a formação de alianças e sistemas de parentescos entre famílias de grupos empobrecidos; é discutida a difusão da prática do concubinato como elemento motor do aumento da miscigenação da população colonial, enfim, reforça os laços de resistência que praticavam as populações mineiras dada as inúmeras restrições que esses desclassificados sociais tem para constituir uma família de um modelo tradicional pretendido pela Coroa e a Igreja.

O quarto capítulo, “O Amor Possível” versa basicamente sobre as condições com que se desenvolveram essas famílias, que aparentemente tomaram um rumo diferenciado do modelo familiar patriarcal dominante em outras áreas da Colônia. Vemos que a Igreja e o Estado não conseguiram instituir o modelo familiar que tanto queriam, embora, as visitações e o Santo Oficio tenham agido para combater a multiplicação de uniões meramente consensuais. Este capítulo reforça como o cotidiano desenvolveu essas uniões e as bases de um modelo de família distinto do pretendido pelas classes dominantes, as populações mineiras encontram diversas maneiras para manterem os seus relacionamentos e não serem condenados pela Igreja.

Como conclusão, temos que a vida familiar nas Minas Gerais do século XVIII transcorreu analogamente à margem das instituições dominantes. A vida familiar dos habitantes nos núcleos urbanos organizou-se com base na tensão entre os instrumentos de poder que buscaram enquadrar as uniões no seio do modelo cristão de família legitima. Desassistidos espiritualmente, excluídos socialmente e afastados dos veículos de transmissão dos valores culturais, o cotidiano irá adaptar a família mineira a desenvolver-se no âmbito de suas necessidades primordiais. Vemos que nesta sociedade a prostituição pode muito bem conviver ao lado de uma certa estrutura familiar, que as festas e batuques dos negros conviviam ao lado dos cultos disciplinados das Irmandades, enfim, de maneira geral, Barrocas famílias ilustra que as populações mineiras lutaram contra a imposição dos valores da classe dominante, porém, este confronto não aconteceu de maneira direta, pois, este enfrentamento levaria à sua exclusão da Igreja. A família, a luta entre a religião oficial e a religiosidade popular em um cenário de amor e raiva são as figuras que ilustram de maneira clara e objetiva o contexto da vida familiar nas Minas Gerais setecentistas.

Bibliografia utilizada como referência para esta resenha.

FIGUEIREDO, Luciano – Barrocas famílias – vida familiar m Minas Gerais no século XVIII. São Paulo, Hucitec, 1997.

SOUZA, Laura de Mello e – Desclassificados do Ouro – a pobreza mineira no século XVIII. (4ª edição). Rio de Janeiro, Graal , 2004.

SOUZA, Laura de Mello e(org.) – História da Vida Privada – vol 1 – Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

FURTADO, Junia Ferreira – O livro da Capa Verde – o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo, Annablume,1996.
BOXER, Charles Ralph – A idade de ouro do Brasil – dores de crescimento da sociedade colonial. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969.

Um comentário:

kadonbackus disse...

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