sábado, 26 de janeiro de 2008

Popol Vuh e a Criação do Homem: Mitologia, Crenças e Religião dos Povos Quiché da Guatemala.


O Popol Vuh apresenta uma versão mitológica da criação do mundo, seguida por um relato das aventuras dos deuses gêmeos, Hunahpú e Xbalanqué, em tempos primordiais, anteriores a criação do ser humano. O triunfo dos deuses do bem contra os deuses do mal, dão lugar a criação do homem à partir do milho e do feijão. A terceira parte do texto se concentra nas origens das linhagens governantes do reino quiché, sua migração até o altiplano da Guatemala, sua conquista dos territórios, o estabelecimento de sua cidade principal e a história de seus reis até a conquista espanhola.


O texto original do século XVI foi perdido. Sabe-se que a primeira obra conhecida estaria escrito no idioma quiché, no entanto, utilizava alfabeto espanhol. No principio e no final do livro, os autores mencionaram que o escreveram porque não era possível ver um livro de tanta importância e tão antigo que não pudesse ser compreendido. Há muitos debates sobre a natureza deste livro, que devia existir antes da conquista espanhola. É provável que tenha sido um manuscrito pictórico similar aos códigos pós-clássicos que se conhecem no centro do México.


O texto mais antigo que se conserva do Popol Vuh é uma tradução do texto quiché feita no início do século XVIII por um frade dominicano chamado Francisco Ximénez, que também fez a primeira tradução conhecida para o espanhol. Ximénez apresentou em coluna dupla o texto quiche junto à versão em espanhol, e o título de sua obra chamava-se “Empiezan las Historias Del Origen de los Índios de esta Província de Guatemala”. Este manuscrito se encontra na coleção Ayer da Biblioteca de Newsberry na cidade de Chicago. Foi extraído da biblioteca da Universidad Nacional de Guatemala pelo abade francês Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, que o compilou pela primeira vez em 1861. Desde então, têm-se realizado diversas edições e traduções desta documentação.


A palavra Popol Vuh significa literalmente “livro da esteira”. Entre os povos meso-americanos, as esteiras eram os símbolos da autoridade e poder dos reis. Eram utilizadas como assentos para os governantes, nobres de alta posição e líderes de linhagens. Por esta razão, o título do livro foi traduzido como “Livro dos Conselhos”.


Os relatos mitológicos do Popol Vuh estão estreitamente relacionados com outros textos mitológicos recompilados no início da época colonial, assim como em muitas tradições orais que se conservam até o presente nas comunidades indígenas da Guatemala e outras partes da Mesoamérica. Nas décadas recentes tem-se demonstrado que também há alguns paralelos relacionados entre o Popol Vuh e as artes clássicas maia. Em particular, as cenas pintadas sobre a cerâmica figuram o período clássico nas terras baixas maias em que são representados alguns deuses e personagens mitológicos relacionados com os mitos do Popol Vuh.


Analisaremos neste trabalho um dos resquícios da cultura indígena da Guatemala e tentaremos entender de uma forma analítica as possíveis interpretações dos três primeiros capítulos da primeira parte do Popol Vuh.

POPOL VUH - HISTÓRIA E MITOLOGIA DOS POVOS QUICHÉ

Os povos do continente americano não se encontravam em um estado de total atraso como se crê freqüentemente. Em vários âmbitos teriam alcançado um elevado grau de sofisticação e adiantamento, como podem mostrar as obras arquitetônicas dos incas em Peru, dos astecas no México e dos maias de Yucatan e Guatemala.


Estes povos conseguiram consolidar uma forte organização política e social, estabeleceram verdadeiros impérios nas regiões centro-americanas, submetendo diversos povos à sua influência política. No campo do desenvolvimento intelectual, os maias, especialmente, conheciam exatamente o movimento dos astros, possuíam um calendário perfeito e uma vasta obra de trabalhos literários e artísticos.


As guerras da Conquista Espanhola foram extremamente destruidoras. A grande cidade do México, naquele tempo, Tenochtitlán, foi arrasada pelos vencedores. A capital dos quichés na Guatemala, chamada Utatlán ou Gumarcaah, pereceu entre as chamas junto aos seus reis e habitantes que foram entregues à escravidão. Não foi diferente em relação a toda a documentação da época, que foi destruída pelos missionários cristãos para que os índios abandonassem as idolatrias e cultos religiosos. No entanto, passado o fervor da perseguição religiosa, alguns missionários se entregaram ao trabalho de reviver as tradições, os costumes e as artes dos indígenas. Algumas dessas informações tem-se conservado na obra de alguns nomes ilustres como: Sahagún, Las Casas, Torquemada e outros escritores.


Mais do que um registro histórico, o Popol Vuh revela a cultura indígena quiché pelo seu aspecto religioso, ou seja, nos traz uma explicação das origens daquele povo e dos fenômenos naturais que os rodeavam. A destruição destes tipos de materiais fora uma tática sistemática utilizada pelos espanhóis numa tentativa de impor-lhes sua cultura, no entanto, não bastava apenas destruir a cultura indígena visando retira-los do estado de selvageria então vigente, era necessário conhecer a cultura indígena para lhes impor através de modelos inteligíveis a religião cristã e acultura-los dos ritos ditos diabólicos.


Vale ressaltar, que a partir da análise que depreenderemos a seguir, vamos notar claramente algumas semelhanças com outras religiões e mitologias, frutos este, da perspectiva utilizada pelo seu primeiro tradutor que tentou expor de forma entendível a tradução do documento.


A primeira relação ou o primeiro discurso presente no documento, é uma descrição estática de como se encontrava o mundo antes da criação. Não havia homem, animais, árvores nem pedras, só existia o céu. A Terra nesta época seria somente mar e céu. Podemos notar neste tipo de descrição um recurso de estilo muito semelhante ao Gênese do Antigo Testamento. A seguir, figuram perante toda esta escuridão e ausência de coisas, as imagens do Criador, do Formador e os Progenitores. Estas divindades estavam todas juntas ocultas debaixo de penas verdes e azuis, caracterizando uma espécie de divindade maior chamada Quetzalcoátl. A natureza destas divindades são “de pensadores e sábios”, sendo assim, vamos notar que, durante todo o documento, estas divindades manterão diálogos entre si planejando a criação das coisas e do homem. Nenhuma entidade toma uma decisão por si só, eles sempre necessitam do aval de seus companheiros deuses.


A seguir, entra em cena uma outra divindade chamada Coração do Céu ou Huracan. O Coração do Céu é formada por divindades menores chamadas Caculhá Huracan (raio de uma perna: relâmpago), Chipi-Caculhá(raio pequeno) e Raxa Caculhá(raio verde: relâmpago grande). O Coração do Céu teria determinado que deveria ser dada a criação do homem, e para isso, dispuseram a criação e o crescimento de todas as formas de vida. No entanto, desta maneira não era possível que houvesse vida, então Tepeu e Gucumatz(Criador e Formador) determinaram que o mar deveria dar lugar a terra. O instante da criação da Terra é narrada com muita eloqüência, mostrando todo o poder que esses deuses tinham. Assim, formaram-se todas as coisas pelo desejo do Coração do Céu, surgiram os rios, as montanhas e os vales. Diferentemente de outras obras, podemos perceber uma importância muito grande dada aos elementos da natureza que nos remetem à uma espécie de visão do paraíso nos tempos da criação.


Após a Terra ser criada, dá-se início à discussão sobre as formas de vida que deveriam habitar os lugares que surgiram. Por isso, determinaram os deuses que deveriam surgir os veados e as aves, e cada um deveria viver segundo o seu habitat e seus costumes.


No entanto, o Criador, o Formador e os Progenitores debateram-se com um pequeno problema. Os deuses deveriam ser invocados, cultuados, solicitados e adorados; não se conseguiu que esses animais falassem para que pudessem invocar seus criadores, sendo assim, os deuses puniram estes animais que agora deveriam lutar pelo seu sustento e estavam todas terminadas a um dia morrer e terem suas carnes consumidas por outros animais. Podemos notar neste tipo de narração, uma semelhança ao Pecado Original cometidos por Adão e Eva, no entanto, há uma diferença básica que os animais seriam os vetores principais do pecado na Terra, e no Antigo Testamento, o pecado original seria oferecido por um animal – a serpente -, só que, afetaria os humanos devido a Adão e Eva terem caído em desgraça. Em ambos os casos, tem-se como um tipo de punição a luta pela sobrevivência.


Uma vez que, os deuses não teriam conseguido serem invocados e adorados, quiseram arriscar e tentar novamente. Experimentaram criar um ser que lhes fosse obedientes e que pudesse lembra-los e adora-los; este ser seria a criatura humana. Na primeira tentativa fizeram a carne do homem de lodo e barro, porém, o mesmo se desfazia e quando entrava na água amolecia, estes seres falavam, no entanto, não tinham entendimento nem racionalidade. Tendo os deuses falhado outra vez, destruíram estes seres e deram início à um longo debate de como deveriam reunir os meios para que o homem sustentasse, alimentasse, lembrasse e invocasse os deuses.


Desta forma, entram os deuses em consulta com Ixpiyacoc e Ixmucané que eram os Progenitores e eram também adivinhos. Estes adivinhos tiraram a sorte nos grãos de milho e nos grãos de tizté(feijões roxos) para que descobrissem se deveriam talhar os homens em madeira ou talharem-lhes através de outro material. Em consulta aos adivinhos, declarou-se que desta vez daria certo, e que os homens deveriam ser talhados de madeira e que estes falarão e conversarão sobre a face da terra. E assim, surgiram os bonecos de madeira, ou seja, os homens. Estes homens falavam, mas seus rostos estavam secos, seus pés e suas mãos não tinham consistência, não tinham sangue, nem substância, suas carnes eram amarelas. E por este motivo, ou seja, de certa debilidade, estes bonecos de madeira não pensavam nem louvavam seus criadores. Os deuses resolveram destruir estes bonecos de pau pela sua desobediência, logo, o Coração do Céu ordenou que um grande dilúvio pairasse sobre as cabeças dos bonecos de pau e os destruísse.


Os deuses novamente teriam falhado, e então tentaram uma ultima vez criar o homem que os adorariam e os venerariam. Fizeram o homem que tinha suas carnes provenientes do feijão e a mulher que teria suas carnes provenientes de espadana. Espadana, segundo fonte do dicionário Houaiss, pode significar barbatana de peixe ou cauda de cometa. Creio que neste tipo de interpretação, a mulher poderia ter sido feita da barbatana de um peixe, pois, embora estas civilizações tinham um contato com o mundo astronômico, este elemento, ou seja, a barbatana de um peixe é muito mais próxima do cotidiano e da alimentação destes povos. O incidente novamente aconteceu, estes seres teriam se tornado melhores que os seus antecessores, porém, mais uma vez os homens não lembravam e nem falavam com os seus criadores.


Por esta razão, ou seja, pela sua vaidade, frivolidade e altivez, os homens foram novamente exterminados e dá-se início a uma descrição apocalíptica de como teria sido o fim destes homens. Alguns seres foram invocados pelos deuses para que acabassem com os homens; Xecotcovach lhes furaram os olhos, Camalotz teriam cortado suas cabeças, Cotzbalam lhe devoraram as carnes e Tucumbalam lhes quebraram os ossos.


E para castiga-los por não terem se lembrado e nem venerado seus criadores, há uma grande revolta do mundo animal e dos “seres” não dotados de vida contra os humanos. Os homens passaram a serem devorados e caçados por todos os animais, que agora falavam, até as pedras começaram a falar e a atacar os homens por serem mau tratadas no ato de se fazer fogo. Todas os animais e coisas, nesse instante, voltam-se contra o homem que irá ver o seu fim mais uma vez.

CONCLUSÃO

Resumindo o conteúdo das três partes do Popol Vuh; A primeira parte é uma descrição da criação do mundo e da origem do homem, que depois de vários fracassos foi feito de milho e feijão, o alimento que constituía a base da alimentação dos maias. A segunda parte trata das aventuras dos jovens semideuses Hunahpú e Ixbalanqué que termina com o castigo dos malvados, e de seus pais sacrificados pelos gênios do mau em seu reino sombrio de Xibalbay.

A terceira parte é uma história detalhada referida à origem dos povos indígenas da Guatemala, suas emigrações, sua distribuição no território, suas guerras e o predomínio da raça quiché sobre as outras até pouco antes da conquista espanhola. Descreve também a história dos Reis e a história de conquistas de outros povos.


Como podemos notar através da narrativa do Popol Vuh, o livro apresenta um forte caráter religioso e cultural. Este tipo de documentação talvez represente um dos mais importantes registros sobre as civilizações que habitaram a América Central que se tem conhecimento.


O Popol Vuh apresenta em seu interior um discurso profético muito semelhante ao Antigo Testamento, e o mesmo é declarado pelo seu autor desconhecido, que se trata do primeiro livro, ou seja, a primeira obra da humanidade que veio a falar de suas origens e destinos. É interessante notar que no objetivo dos deuses em fazer uma criatura que pudesse adora-los e cultua-los, os mesmos o fazem através da tentativa e do erro, o que a grosseiro modo se assemelha com uma relativa evolução das espécies. Todo este fundo comum entre o Popol Vuh , o Antigo Testamento e a pluralidade de idéias muito semelhante à outras religiões, irão dar margem para alguns missionários cristãos enxergarem em Quetzalcóatl o próprio Jesus Cristo e justificar através da dominação espanhola, o surgimento de um último império, um ultimo reino, um último sol.

BIBLIOGRAFIA:

Paulo Suess(org). A Conquista Espiritual da América Latina Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992

Adrian Recinos. Popol Vuh: Las antiguas historias Del Quiché. Fondo Cultura Economica Mexico,1992

Leslie Bethel(org). História da América Latina. São Paulo: Edusp, v.1. 1997

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