sábado, 26 de janeiro de 2008

Popol Vuh e a Criação do Homem: Mitologia, Crenças e Religião dos Povos Quiché da Guatemala.


O Popol Vuh apresenta uma versão mitológica da criação do mundo, seguida por um relato das aventuras dos deuses gêmeos, Hunahpú e Xbalanqué, em tempos primordiais, anteriores a criação do ser humano. O triunfo dos deuses do bem contra os deuses do mal, dão lugar a criação do homem à partir do milho e do feijão. A terceira parte do texto se concentra nas origens das linhagens governantes do reino quiché, sua migração até o altiplano da Guatemala, sua conquista dos territórios, o estabelecimento de sua cidade principal e a história de seus reis até a conquista espanhola.


O texto original do século XVI foi perdido. Sabe-se que a primeira obra conhecida estaria escrito no idioma quiché, no entanto, utilizava alfabeto espanhol. No principio e no final do livro, os autores mencionaram que o escreveram porque não era possível ver um livro de tanta importância e tão antigo que não pudesse ser compreendido. Há muitos debates sobre a natureza deste livro, que devia existir antes da conquista espanhola. É provável que tenha sido um manuscrito pictórico similar aos códigos pós-clássicos que se conhecem no centro do México.


O texto mais antigo que se conserva do Popol Vuh é uma tradução do texto quiché feita no início do século XVIII por um frade dominicano chamado Francisco Ximénez, que também fez a primeira tradução conhecida para o espanhol. Ximénez apresentou em coluna dupla o texto quiche junto à versão em espanhol, e o título de sua obra chamava-se “Empiezan las Historias Del Origen de los Índios de esta Província de Guatemala”. Este manuscrito se encontra na coleção Ayer da Biblioteca de Newsberry na cidade de Chicago. Foi extraído da biblioteca da Universidad Nacional de Guatemala pelo abade francês Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, que o compilou pela primeira vez em 1861. Desde então, têm-se realizado diversas edições e traduções desta documentação.


A palavra Popol Vuh significa literalmente “livro da esteira”. Entre os povos meso-americanos, as esteiras eram os símbolos da autoridade e poder dos reis. Eram utilizadas como assentos para os governantes, nobres de alta posição e líderes de linhagens. Por esta razão, o título do livro foi traduzido como “Livro dos Conselhos”.


Os relatos mitológicos do Popol Vuh estão estreitamente relacionados com outros textos mitológicos recompilados no início da época colonial, assim como em muitas tradições orais que se conservam até o presente nas comunidades indígenas da Guatemala e outras partes da Mesoamérica. Nas décadas recentes tem-se demonstrado que também há alguns paralelos relacionados entre o Popol Vuh e as artes clássicas maia. Em particular, as cenas pintadas sobre a cerâmica figuram o período clássico nas terras baixas maias em que são representados alguns deuses e personagens mitológicos relacionados com os mitos do Popol Vuh.


Analisaremos neste trabalho um dos resquícios da cultura indígena da Guatemala e tentaremos entender de uma forma analítica as possíveis interpretações dos três primeiros capítulos da primeira parte do Popol Vuh.

POPOL VUH - HISTÓRIA E MITOLOGIA DOS POVOS QUICHÉ

Os povos do continente americano não se encontravam em um estado de total atraso como se crê freqüentemente. Em vários âmbitos teriam alcançado um elevado grau de sofisticação e adiantamento, como podem mostrar as obras arquitetônicas dos incas em Peru, dos astecas no México e dos maias de Yucatan e Guatemala.


Estes povos conseguiram consolidar uma forte organização política e social, estabeleceram verdadeiros impérios nas regiões centro-americanas, submetendo diversos povos à sua influência política. No campo do desenvolvimento intelectual, os maias, especialmente, conheciam exatamente o movimento dos astros, possuíam um calendário perfeito e uma vasta obra de trabalhos literários e artísticos.


As guerras da Conquista Espanhola foram extremamente destruidoras. A grande cidade do México, naquele tempo, Tenochtitlán, foi arrasada pelos vencedores. A capital dos quichés na Guatemala, chamada Utatlán ou Gumarcaah, pereceu entre as chamas junto aos seus reis e habitantes que foram entregues à escravidão. Não foi diferente em relação a toda a documentação da época, que foi destruída pelos missionários cristãos para que os índios abandonassem as idolatrias e cultos religiosos. No entanto, passado o fervor da perseguição religiosa, alguns missionários se entregaram ao trabalho de reviver as tradições, os costumes e as artes dos indígenas. Algumas dessas informações tem-se conservado na obra de alguns nomes ilustres como: Sahagún, Las Casas, Torquemada e outros escritores.


Mais do que um registro histórico, o Popol Vuh revela a cultura indígena quiché pelo seu aspecto religioso, ou seja, nos traz uma explicação das origens daquele povo e dos fenômenos naturais que os rodeavam. A destruição destes tipos de materiais fora uma tática sistemática utilizada pelos espanhóis numa tentativa de impor-lhes sua cultura, no entanto, não bastava apenas destruir a cultura indígena visando retira-los do estado de selvageria então vigente, era necessário conhecer a cultura indígena para lhes impor através de modelos inteligíveis a religião cristã e acultura-los dos ritos ditos diabólicos.


Vale ressaltar, que a partir da análise que depreenderemos a seguir, vamos notar claramente algumas semelhanças com outras religiões e mitologias, frutos este, da perspectiva utilizada pelo seu primeiro tradutor que tentou expor de forma entendível a tradução do documento.


A primeira relação ou o primeiro discurso presente no documento, é uma descrição estática de como se encontrava o mundo antes da criação. Não havia homem, animais, árvores nem pedras, só existia o céu. A Terra nesta época seria somente mar e céu. Podemos notar neste tipo de descrição um recurso de estilo muito semelhante ao Gênese do Antigo Testamento. A seguir, figuram perante toda esta escuridão e ausência de coisas, as imagens do Criador, do Formador e os Progenitores. Estas divindades estavam todas juntas ocultas debaixo de penas verdes e azuis, caracterizando uma espécie de divindade maior chamada Quetzalcoátl. A natureza destas divindades são “de pensadores e sábios”, sendo assim, vamos notar que, durante todo o documento, estas divindades manterão diálogos entre si planejando a criação das coisas e do homem. Nenhuma entidade toma uma decisão por si só, eles sempre necessitam do aval de seus companheiros deuses.


A seguir, entra em cena uma outra divindade chamada Coração do Céu ou Huracan. O Coração do Céu é formada por divindades menores chamadas Caculhá Huracan (raio de uma perna: relâmpago), Chipi-Caculhá(raio pequeno) e Raxa Caculhá(raio verde: relâmpago grande). O Coração do Céu teria determinado que deveria ser dada a criação do homem, e para isso, dispuseram a criação e o crescimento de todas as formas de vida. No entanto, desta maneira não era possível que houvesse vida, então Tepeu e Gucumatz(Criador e Formador) determinaram que o mar deveria dar lugar a terra. O instante da criação da Terra é narrada com muita eloqüência, mostrando todo o poder que esses deuses tinham. Assim, formaram-se todas as coisas pelo desejo do Coração do Céu, surgiram os rios, as montanhas e os vales. Diferentemente de outras obras, podemos perceber uma importância muito grande dada aos elementos da natureza que nos remetem à uma espécie de visão do paraíso nos tempos da criação.


Após a Terra ser criada, dá-se início à discussão sobre as formas de vida que deveriam habitar os lugares que surgiram. Por isso, determinaram os deuses que deveriam surgir os veados e as aves, e cada um deveria viver segundo o seu habitat e seus costumes.


No entanto, o Criador, o Formador e os Progenitores debateram-se com um pequeno problema. Os deuses deveriam ser invocados, cultuados, solicitados e adorados; não se conseguiu que esses animais falassem para que pudessem invocar seus criadores, sendo assim, os deuses puniram estes animais que agora deveriam lutar pelo seu sustento e estavam todas terminadas a um dia morrer e terem suas carnes consumidas por outros animais. Podemos notar neste tipo de narração, uma semelhança ao Pecado Original cometidos por Adão e Eva, no entanto, há uma diferença básica que os animais seriam os vetores principais do pecado na Terra, e no Antigo Testamento, o pecado original seria oferecido por um animal – a serpente -, só que, afetaria os humanos devido a Adão e Eva terem caído em desgraça. Em ambos os casos, tem-se como um tipo de punição a luta pela sobrevivência.


Uma vez que, os deuses não teriam conseguido serem invocados e adorados, quiseram arriscar e tentar novamente. Experimentaram criar um ser que lhes fosse obedientes e que pudesse lembra-los e adora-los; este ser seria a criatura humana. Na primeira tentativa fizeram a carne do homem de lodo e barro, porém, o mesmo se desfazia e quando entrava na água amolecia, estes seres falavam, no entanto, não tinham entendimento nem racionalidade. Tendo os deuses falhado outra vez, destruíram estes seres e deram início à um longo debate de como deveriam reunir os meios para que o homem sustentasse, alimentasse, lembrasse e invocasse os deuses.


Desta forma, entram os deuses em consulta com Ixpiyacoc e Ixmucané que eram os Progenitores e eram também adivinhos. Estes adivinhos tiraram a sorte nos grãos de milho e nos grãos de tizté(feijões roxos) para que descobrissem se deveriam talhar os homens em madeira ou talharem-lhes através de outro material. Em consulta aos adivinhos, declarou-se que desta vez daria certo, e que os homens deveriam ser talhados de madeira e que estes falarão e conversarão sobre a face da terra. E assim, surgiram os bonecos de madeira, ou seja, os homens. Estes homens falavam, mas seus rostos estavam secos, seus pés e suas mãos não tinham consistência, não tinham sangue, nem substância, suas carnes eram amarelas. E por este motivo, ou seja, de certa debilidade, estes bonecos de madeira não pensavam nem louvavam seus criadores. Os deuses resolveram destruir estes bonecos de pau pela sua desobediência, logo, o Coração do Céu ordenou que um grande dilúvio pairasse sobre as cabeças dos bonecos de pau e os destruísse.


Os deuses novamente teriam falhado, e então tentaram uma ultima vez criar o homem que os adorariam e os venerariam. Fizeram o homem que tinha suas carnes provenientes do feijão e a mulher que teria suas carnes provenientes de espadana. Espadana, segundo fonte do dicionário Houaiss, pode significar barbatana de peixe ou cauda de cometa. Creio que neste tipo de interpretação, a mulher poderia ter sido feita da barbatana de um peixe, pois, embora estas civilizações tinham um contato com o mundo astronômico, este elemento, ou seja, a barbatana de um peixe é muito mais próxima do cotidiano e da alimentação destes povos. O incidente novamente aconteceu, estes seres teriam se tornado melhores que os seus antecessores, porém, mais uma vez os homens não lembravam e nem falavam com os seus criadores.


Por esta razão, ou seja, pela sua vaidade, frivolidade e altivez, os homens foram novamente exterminados e dá-se início a uma descrição apocalíptica de como teria sido o fim destes homens. Alguns seres foram invocados pelos deuses para que acabassem com os homens; Xecotcovach lhes furaram os olhos, Camalotz teriam cortado suas cabeças, Cotzbalam lhe devoraram as carnes e Tucumbalam lhes quebraram os ossos.


E para castiga-los por não terem se lembrado e nem venerado seus criadores, há uma grande revolta do mundo animal e dos “seres” não dotados de vida contra os humanos. Os homens passaram a serem devorados e caçados por todos os animais, que agora falavam, até as pedras começaram a falar e a atacar os homens por serem mau tratadas no ato de se fazer fogo. Todas os animais e coisas, nesse instante, voltam-se contra o homem que irá ver o seu fim mais uma vez.

CONCLUSÃO

Resumindo o conteúdo das três partes do Popol Vuh; A primeira parte é uma descrição da criação do mundo e da origem do homem, que depois de vários fracassos foi feito de milho e feijão, o alimento que constituía a base da alimentação dos maias. A segunda parte trata das aventuras dos jovens semideuses Hunahpú e Ixbalanqué que termina com o castigo dos malvados, e de seus pais sacrificados pelos gênios do mau em seu reino sombrio de Xibalbay.

A terceira parte é uma história detalhada referida à origem dos povos indígenas da Guatemala, suas emigrações, sua distribuição no território, suas guerras e o predomínio da raça quiché sobre as outras até pouco antes da conquista espanhola. Descreve também a história dos Reis e a história de conquistas de outros povos.


Como podemos notar através da narrativa do Popol Vuh, o livro apresenta um forte caráter religioso e cultural. Este tipo de documentação talvez represente um dos mais importantes registros sobre as civilizações que habitaram a América Central que se tem conhecimento.


O Popol Vuh apresenta em seu interior um discurso profético muito semelhante ao Antigo Testamento, e o mesmo é declarado pelo seu autor desconhecido, que se trata do primeiro livro, ou seja, a primeira obra da humanidade que veio a falar de suas origens e destinos. É interessante notar que no objetivo dos deuses em fazer uma criatura que pudesse adora-los e cultua-los, os mesmos o fazem através da tentativa e do erro, o que a grosseiro modo se assemelha com uma relativa evolução das espécies. Todo este fundo comum entre o Popol Vuh , o Antigo Testamento e a pluralidade de idéias muito semelhante à outras religiões, irão dar margem para alguns missionários cristãos enxergarem em Quetzalcóatl o próprio Jesus Cristo e justificar através da dominação espanhola, o surgimento de um último império, um ultimo reino, um último sol.

BIBLIOGRAFIA:

Paulo Suess(org). A Conquista Espiritual da América Latina Espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992

Adrian Recinos. Popol Vuh: Las antiguas historias Del Quiché. Fondo Cultura Economica Mexico,1992

Leslie Bethel(org). História da América Latina. São Paulo: Edusp, v.1. 1997

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Resenha Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo.


Luciano Figueiredo em sua presente obra Barrocas Famílias – Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII, nos apresenta uma importante abordagem sobre o tema da família e a sua especificidade no âmbito do cotidiano da sociedade mineira; Mestre e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, sendo professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Luciano tem uma série de trabalhos publicados sobre as Minas Gerais setecentistas analisando estes e outros objetos de estudo das sociedades coloniais na América Portuguesa.

O eixo principal da análise feita por Luciano em Barrocas Famílias, está na dimensão peculiar que a História Social propôs ao investigar o cotidiano dos sentimentos, as paixões, os afetos, as violências, solidariedades e atitudes no domínio da família envolvendo as populações das Minas Gerais. Os principais tipos de documentos que possibilitaram com que fosse feita esta pesquisa são os livros de devassas, esta documentação representa a apuração minuciosa de delitos cometidos e ou denunciados para a mesa dos visitadores episcopais mediante a convocação de testemunhas, onde, de maneira geral, seus suspeitos e condenados seriam transgressores do modo de conduta que prega o cristianismo.

No primeiro capítulo do livro, “Poder, poderes e a vida familiar”, uma das questões que eram amplamente discutidas tanto pelo Estado português sob o Padroado Régio como pelas autoridades eclesiásticas é a da necessidade de implantação de um modelo de família legítimo na Colônia, na luta pela defesa do casamento e pela constituição de famílias legais, a Igreja irá investigar através das visitações diocesanas uma gama de desvios delatados, porém, uma das acusações que possuem maior relevância numérica são aqueles relacionados aos “tratos ilícitos” entre homens e mulheres: o concubinato. Há uma clara intenção do Estado metropolitano em estimular a formação de famílias de origem portuguesas, uma vez que o processo de povoamento do Brasil como colocou Caio Prado Jr, não se fazia pela emigração de famílias constituídas e sim pela vinda de homens sozinhos que tentam a sorte de fazer fortuna na Colônia; acrescenta-se a isso a grande escassez de mulheres brancas. Somente com o desenvolvimento da mineração nas Gerais no século XVIII, é a que a Coroa necessitou tomar medidas mais eficazes em sua política familiar, o caráter urbano que concentra enormes contingentes populacionais, a extrema diversificação de atividades, a enorme massa de desclassificados sociais, fez com que fosse necessário um maior controle social das populações mineiras; sendo assim, a expansão das famílias legítimas seria uma peça vital para manter em funcionamento os mecanismos do sistema colonial e levar relativa paz social à Colônia.

Com este mesmo sentido, legislava-se a fim de preservar a pureza racial como critério para acesso de cargos de importância política e social na comunidade, sem nos esquecer que, existia uma sensação de guerra racial latente devido a desproporção numérica entre brancos e negros e que mesmo os mestiços representavam para a elite colonial uma população indisciplinada, desclassificada e desligadas do sistema escravista-exportador. Resumindo, embora este controle social seja pretendido pelo Estado, o próprio não possui instrumentos para tal, logo, quem irá efetivamente exercer o poder de polícia na região será a Igreja para que se mantenha este quadro de estabilidade colonial.

Aliada às pretensões de controle social anteriormente descrito, deve-se lembrar que a Igreja mineira e o clero colonial vivem os efeitos da reforma católica e do Concílio de Trento, o sínodo da Bahia, em 1707, consolidou as orientações do Concílio através das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Surgia assim, uma necessidade da Igreja se institucionalizar efetivamente, a entrada e fixação de ordens religiosas estavam proibidas no estado do Brasil, e todas as responsabilidades de assistência espiritual e o zelo pelas condutas morais das populações mineiras serão dadas ao clero secular.

A dificuldade de efetivar-se o sacramento do matrimônio não era somente um problema moral, em uma população extremamente móvel principalmente em seus substratos intermediários, era difícil uma fixação e constituição de uma família; além de os processos de casamentos serem muito dispendiosos e burocráticos para uma sociedade repleta de desclassificados e de pessoas sem bens e ofícios.

Os meio utilizados pela Igreja para coibir essas transgressões eram as visitações episcopais, valendo-se do julgamento de condutas, promove-se uma ação judicial para observar e punir as práticas cotidianas das populações; havia punições com cobranças pecuniárias, excomunhões, separações e mais raramente castigos físicos e prisões, todas essas medidas remetiam a população ao poder de julgar da Mesa de Visitação. Todavia, a Igreja mineira tinha uma grande deficiência em organizar um trabalho mais doutrinário, havia uma certa tolerância para com as reincidências, por isso, a Igreja necessitava deste aparelho que seria um pouco mais tolerante com os desvios das populações, sem esquecer que, para todas as delações feitas sempre deveria de haver o julgamento da mesa..

Vale lembrar também a criação da Inquisição que agora era responsável por investigar ou inquirir sobre os crimes contra a fé, todavia, a criação dos tribunais inquisitoriais chegou a levar em choque alguns bispos e os inquisidores por causa de uma sensível perda do episcopado de suas tradicionais funções. Com a Reforma Tridentina, veio estabelecer-se que o foco das preocupações do episcopado deveriam ser o exercício da confissão, a verificação da situação de confrarias dos penitentes, o catecismo e a responsabilidade pelos seminários locais; além de receberem denuncias contra criminosos, que eram compiladas e punidas. Sendo assim, as visitas pelo território português não seriam somente uma ocupação exclusiva dos bispados, as visitações episcopais de certa forma deveriam se preocupar mais com os aspectos materiais e jurídicos inerentes à estruturação do trabalho religioso na diocese: como são feitos os registros de batismos e mortes, o estado dos clérigos, os limites territoriais; casos como denúncias de desvios, práticas imorais e heresias poderiam ser levadas ao Tribunal do Santo Ofício. Sem nos esquecermos que as visitas às Minas Gerais não faziam vigilância para com dissidentes não-católicos, como judeus e protestantes.

A visitação procedia a uma devassa, as devassas são informações de delitos recebidas pelo visitador, onde é ouvido testemunhas e dado um julgamento ao desvio cometido. Após a criação do Bispado de Mariana em 1745-48, as visitações irão ter um significado mais preciso de disciplinar e punir condutas desviantes, além também de cuidar da administração eclesiástica local. A equipe básica que compunha esses tribunais diocesanos era formada pelo visitador-geral – nomeado pelo bispo, caso não fosse ele mesmo –, um tesoureiro e um escrivão que era responsável por registrar as narrativas dos depoentes. No ato de nomeação do visitador já estariam definidas quais as comarcas eclesiásticas e localidades a serem percorridas pelas visitações. Quando se dedicava às inquirições, geralmente o visitador necessitava convocar testemunhas entre os moradores da localidade, o processo de convocação era feito de duas formas: ou estaria divulgado em um edital ou as testemunhas deveriam apresentar-se voluntariamente. Esses interrogatórios consistiriam numa relação de cerca de quarenta quesitos dos quais contavam uma série de práticas consideradas criminosas: jogo, toda sorte de crenças e práticas mágicas, concubinato, incesto, usura, sodomia, desvios que atentassem contra a conduta cristã e heresias.

Assim, caso um fiel tivesse conhecimento de uma pessoa envolvida num desses quesitos deveriam denuncia-la quando da chegada do visitador. Havia também formas de convocações nominais do qual eram chamados a depor pessoas destacadas socialmente ou indicadas pelo vigário local. No entanto, grande parte dos denunciantes acabavam por pertencer aos grupos intermediários da sociedade mineradora. Um traço muito comum feita nas acusações das devassas era que as pessoas utilizavam expressões como “há escândalo na vizinhança”, “é público e notório”, “com escândalo geral” e derivações semelhantes para que o depoente se isentasse de qualquer envolvimento particular no caso e afastasse quaisquer suspeitas de uma motivação pessoal da denúncia que também eram punidas com rigor.

As visitas diocesanas que percorreram e percutiram o território mineiro transcorrem de maneira complementar a ação dos funcionários do Santo Oficio na região. Desta forma, os visitadores do Santo Oficio deveriam ser bem qualificados intelectualmente e de prestígio para com a Igreja. Depois do julgamento dos processos coligidos, realizado na sede do bispado, outra visita era feita para condenar aqueles que mereciam punições.

Algumas das visitas em Minas Gerais colonial contaram com a participação direta de comissários do Santo Oficio, membros da Inquisição portuguesa que acompanhavam o processo de devassas na região, logo, embora as populações mineiras fossem de certa forma preservadas do Tribunal da Inquisição, as vezes como quando da presença do Dr. Geraldo José Abranches entre 1742 e 1762 na condição de visitador episcopal, fazia o elo da pequena inquisição para com a grande inquisição. As denuncias ao Tribunal do Santo Oficio poderiam ser feitas pelo próprio clero local, por intermédio dos comissários; a absoluta maioria das visitações escapou da alçada do Tribunal do Santo Oficio e as suas penas eram geralmente mais brandas que as da Inquisição. A Inquisição parecia exercer a verdadeira “pedagogia do medo” que marcava o comportamento do inquisidor para com o acusado, fazendo com o que o acusado caísse nas contradições de suas próprias palavras, uma vez que as visitas episcopais preocupavam-se em fazer os questionamentos pré-estabelecidos.

No segundo capítulo “Tensões na Conjugalidade Mineira”, como o próprio nome diz, coloca em questão as relações conjugais que eram estabelecidas através do matrimonio. São expostos inúmeros casos de tensões existentes no interior do modelo legítimo de família que puderam ser verificados através das devassas; também são expostos as condições em que viviam os escravos inseridos dentro desse ambiente urbano das Minas Gerais, os casos de adultérios que fazem os senhores com seus escravos e a questão do casamento de escravos.

Luciano a partir das devassas ilustra as separações e os conflitos no interior dos relacionamentos, as violências praticadas contra as mulheres por maridos que eram movidos pelo ciúme, a intenção da igreja em perpetuar o caráter indissolúvel do matrimonio, as práticas de mulheres que não eram compatíveis com o seu papel de submissão no interior do relacionamento, e as formas de trabalho e sobrevivência que restavam a um enorme contingente de mulheres escravas e alforriadas que era a prostituição na maioria das vezes. Também são ilustradas as práticas de adultério que eram favorecidas pelo afastamento prolongado do marido nas Minas, o controle feminino de pequenas atividades comerciais que lhes davam certa independência e autonomia para estabelecerem novos amores etc.

O terceiro capítulo, “Cotidiano e Resistência”, reforça as praticas que foram se desenvolvendo através do cotidiano das populações mineiras que muitas vezes não eram compatíveis com os padrões vigentes da Igreja. Surgem assim, outras formas de convívio familiar e extraconjugais como os incestos, o apadrinhamento e a criação de crianças enjeitadas, o infanticídio, a formação de alianças e sistemas de parentescos entre famílias de grupos empobrecidos; é discutida a difusão da prática do concubinato como elemento motor do aumento da miscigenação da população colonial, enfim, reforça os laços de resistência que praticavam as populações mineiras dada as inúmeras restrições que esses desclassificados sociais tem para constituir uma família de um modelo tradicional pretendido pela Coroa e a Igreja.

O quarto capítulo, “O Amor Possível” versa basicamente sobre as condições com que se desenvolveram essas famílias, que aparentemente tomaram um rumo diferenciado do modelo familiar patriarcal dominante em outras áreas da Colônia. Vemos que a Igreja e o Estado não conseguiram instituir o modelo familiar que tanto queriam, embora, as visitações e o Santo Oficio tenham agido para combater a multiplicação de uniões meramente consensuais. Este capítulo reforça como o cotidiano desenvolveu essas uniões e as bases de um modelo de família distinto do pretendido pelas classes dominantes, as populações mineiras encontram diversas maneiras para manterem os seus relacionamentos e não serem condenados pela Igreja.

Como conclusão, temos que a vida familiar nas Minas Gerais do século XVIII transcorreu analogamente à margem das instituições dominantes. A vida familiar dos habitantes nos núcleos urbanos organizou-se com base na tensão entre os instrumentos de poder que buscaram enquadrar as uniões no seio do modelo cristão de família legitima. Desassistidos espiritualmente, excluídos socialmente e afastados dos veículos de transmissão dos valores culturais, o cotidiano irá adaptar a família mineira a desenvolver-se no âmbito de suas necessidades primordiais. Vemos que nesta sociedade a prostituição pode muito bem conviver ao lado de uma certa estrutura familiar, que as festas e batuques dos negros conviviam ao lado dos cultos disciplinados das Irmandades, enfim, de maneira geral, Barrocas famílias ilustra que as populações mineiras lutaram contra a imposição dos valores da classe dominante, porém, este confronto não aconteceu de maneira direta, pois, este enfrentamento levaria à sua exclusão da Igreja. A família, a luta entre a religião oficial e a religiosidade popular em um cenário de amor e raiva são as figuras que ilustram de maneira clara e objetiva o contexto da vida familiar nas Minas Gerais setecentistas.

Bibliografia utilizada como referência para esta resenha.

FIGUEIREDO, Luciano – Barrocas famílias – vida familiar m Minas Gerais no século XVIII. São Paulo, Hucitec, 1997.

SOUZA, Laura de Mello e – Desclassificados do Ouro – a pobreza mineira no século XVIII. (4ª edição). Rio de Janeiro, Graal , 2004.

SOUZA, Laura de Mello e(org.) – História da Vida Privada – vol 1 – Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

FURTADO, Junia Ferreira – O livro da Capa Verde – o regimento diamantino de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo, Annablume,1996.
BOXER, Charles Ralph – A idade de ouro do Brasil – dores de crescimento da sociedade colonial. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O Outono do Patriarca de Gabriel García Márquez.

Gabriel García Márquez nasceu em 6 de novembro de 1928 em Arataca, cidade litorânea da Colômbia. Estudou direito, porém, logo se apaixonou pelo jornalismo, que o marcaria profundamente a optar pela carreira de escritor. Gabriel fora um militante apaixonado das esquerdas latino-americanas, viveu muitos anos fora de seu país, foi um dos grandes defensores do regime de Fidel Castro, fez severas críticas aos norte-americanos e quase chegou a realizar uma greve contra o ditador chileno Pinochet, ameaçando parar de escrever. Em 1982, Gabriel foi agraciado pelo Prêmio Nobel de Literatura quinze anos após de ter escrito seu maior sucesso “Cem Anos de Solidão”, que foi traduzido em 35 idiomas e estima-se ter vendido cerca de 30 milhões de exemplares.

A obra de Gabo, como é carinhosamente chamado por fãs e amigos, é geralmente caracterizada por uma América Latina estereotipada e, desta forma, são refletidas as mazelas da colonização através da recorrência usual do autor em usar como personagens latifundiários, ditadores e caudilhos. A sua preocupação estilística e social também era compartilhada por outros escritores, sendo assim, surge uma nova corrente literária intitulada Realismo Mágico; e seus maiores representantes foram escritores latino-americanos como os argentinos Júlio Cortazar e Jorge Luis Borges e o cubano Alejo Carpentier.

Em 1975, Gabo lança “O Outono do Patriarca” que narra a absurda história de um ditador tão solitário quanto autoritário. Tudo se passa em um país imaginário na região do Caribe, em um lugar praticamente isolado das relações com os outros países, onde governa um tirano que está no poder não se sabe há quanto tempo e nem se sabe exatamente como chegou ao poder. Grande parte da história se passa na residência do presidente, um lugar totalmente atípico do que se convenciona ser o centro de poder e mando de um país. Em meio aos gabinetes de ministérios e funcionários do Estado, encontram-se vacas andando por todos os lados, jogando suas excretas sobre papéis de importância burocrática; encontram-se uma infinidade de galinhas e passarinhos enjaulados. O Patriarca, cujo nome não é citado em nenhum momento do livro, tem uma idade indefinida entre 107 e 232 anos e devia ter chegado ao poder através de um golpe de Estado. Passados muitos anos de governo, o ditador tinha a dúvida de como a nação se comportaria caso ele morresse; sendo assim, resolveu usar o seu sósia Patrício Aragonés, dessa vez para simular a sua morte. O resultado é que em meio a poucas manifestações de carinho ao Patriarca, a população invade o palácio presidencial saqueando-o, o ditador vê “seu” corpo sendo arrastado pelo chão enquanto as multidões comemoravam a vinda da liberdade proporcionada pela morte do tirano.

Tendo tido a oportunidade de presenciar o que lhe aconteceria caso morresse, o ditador resolve por em ação o seu plano de vingança e junto aos poucos generais que ainda lhe eram leais dá início ao maior período da repressão vista naquele país: manda matar e torturar milhares de pessoas que desonraram a sua memória em atos de vandalismo. A figura deste ditador é trágica, ele prevê seus futuros atos de despotismo através da premonição de pitonisas e cartas de adivinhação; embora tenha poderes nunca antes vistos por um governante em seu país, ele vive em uma profunda solidão e depressão convivendo com uma hérnia em seus testículos que lhe causavam infindáveis dores para urinar e fazia com que sempre viesse a desmaiar e dormir na mesma posição. Uma espécie de síndrome do pânico assola a mente do ditador, antes de dormir deve fechar uma série de janelas, portas, cadeados e fechaduras com medo de que pudesse estar sendo vigiado por alguém; sustenta um amor sacramental pela sua mãe Bendicíon Alvarado que quando morre vira padroeira da nação e é beatificada trapaceiramente sob o pretexto de que depois de morta, seu corpo não teria entrado em processo de decomposição – prova de sua santidade –, além disso, o Patriarca rompe com a Igreja para sacramenta-la.

Além da solidão, o ditador sempre foi incapaz de amar alguém; e esta convicção da impossibilidade de se amar alguém irá engendrar no ditador uma amargura ontológica que irá se traduzir na própria empresa do ódio e irá culminar no exercício cego do poder pelo poder. “Aquele que manda” como foi várias vezes citado no livro, chegou a “achar” que amava alguém e este amor foi por Leticina Nazareno, com quem teve um filho chamado Emanuel, porém, o ditador torna-se alvo de seu próprio poder e é praticado um atentado que acaba com a vida de sua mulher e filho que foram devorados por cães especialmente treinados. No ímpeto de vingança, o “grande macho” dá início a uma outra onda de violência totalitária, realizando milhares de prisões e fuzilamentos na procura dos criminosos de Letícia e Emanuel. Algumas semanas depois, nem se lembrava mais de Leticina Nazareno e voltou a copular com suas concubinas como outrora.

O Patriarca está sempre a andar com uma bolinha de gude, uma espécie de amuleto que representa o símbolo do poder, como se pudesse segurar o planeta em suas mãos e tivesse pleno controle dele. O ditador é apaixonado pelo poder, porém, não sabe o que fazer com ele. Totalmente movido pela ambição, do qual, desafia as grandes potências da Europa, rompe com a Igreja para que não tenha seu poder submetido com ninguém senão com ele mesmo. O déspota parece se alimentar das pessoas que vivem ao seu redor, todos os seus colaboradores são manipulados e dispensados quando não eram mais úteis sem o menor constrangimento, ele era temido por todos, e as poucas pessoas do qual confiava era o general Rodrigo de Aguillar, somente pelo motivo de ter vencido o Patriarca em uma partida de dominó, ao passo que, todos os outros desafiantes perdiam o jogo com o medo de enfrentarem represálias.

Mesmo assim, o Patriarca parece temer a sua própria sombra, cede às suas forças armadas munições misturadas com areia de praia com medo de sofrer um levante militar, tenta enaltecer as grandezas de seu governo através dos mais diversos devaneios, mantendo paralíticos e leprosos nos jardins da mansão presidencial.

A figura da mansão presidencial é mais uma alegoria do completo caos que os regimes totalitários e ditatoriais, sobretudo na visão latino-americana, imergem nas sociedades através da coerção, manipulação e repressão. O próprio fato de o autor omitir o nome do país e o nome do governante impõe uma fácil associação com os regimes ditatoriais que se espalharam pela América Latina. Trata-se de um país subdesenvolvido, com sua base voltada na agricultura, uma grande massa de pessoas incultas e sob a influência das grandes potências.

Quanto às características formais do livro, somente há vírgulas e pontos finais, caracterizando a narrativa como se fosse descrita através de um sonho ou visão contada, do qual, não se pode definir muito bem quem está narrando ou quem está falando: estilo este típico do Realismo Mágico. Essa característica irá perfeitamente ao encontro da proposta do livro, uma vez que o destino trágico do ditador já estava previsto pela adivinhação da pitonisa, que foi assassinada por temer que o segredo de Estado de sua morte viesse a público. Embora o ditador tenha a sua idade indefinida, ele não era imortal e fatalmente o seu dia iria chegar, porém, não se sabe quando, somente se sabe que esses dias irão suceder-se como todos os outros: na absoluta solidão.

O alcance simbólico deste ditador é universal e Gabo teria escrito o livro e feito suas pesquisas na Espanha durante o período franquista, de onde provém grande parte de sua inspiração; todavia, o próprio autor também havia mencionado que este estilo de um General-presidente, “Dono da Nação”, fanfarrão, eloqüente e dotado de um estilo unipessoal de exercício do poder foi também inspirado em Juan Vicente Gómez (1857-1935), ditador venezuelano que governou o país de 1908 a 1935.

Resumindo através de uma abordagem temática o conteúdo do livro, ele basicamente versa em seu início sobre o perfil do ditador e o seu modus vivendi, depois coloca o ditador como o dono do poder e dono de todas as coisas e posteriormente caracteriza e relaciona a estrutura patrimonial do Estado. Por fim, a natureza edipiana do ditador, ou seja, como se escancaram as complexidades psicológicas do autor desde a sua gestação até o seu cotidiano como soberano da nação.

O Outono do Patriarca é uma alegoria das ditaduras latino-americanas e a grande contribuição que esta obra apresenta é justamente a construção de um arquétipo praticamente perfeito de um ditador do qual o poder gira em sua órbita. Vale lembrar que este modelo é altamente aplicável nos dias de hoje, basta analisar a postura política de Hugo Chávez que, sem sombra de dúvida, é um herdeiro da política de Juan Vicente Gómez e do caudilhismo.